Quando se recorre à inesquecível
Seattle dos anos 90, inevitavelmente brotam da memória
as bandas que transformaram o proibitivo som de guitarras
sujas em uma proposta assimilável pelo grande público:
Nirvana, Mudhoney, Alice in Chains são bons exemplos
que não se deixam esquecer. Por mais díspares
que tenham sido suas características, todas foram
bem sucedidas em conquistar a audiência da época,
muito pelo equivocado senso de unicidade criado pela mídia
que as apresentou como destaques de uma suposta cena.
A saudosa Seattle, entretanto, escondeu uma série
de outras bandas que não se comunicou de forma
tão imediata com o ouvinte, cujo destino fatalmente
encontrou o ostracismo ou o culto fora do circuito mainstream.
Dessas bandas “esquecidas”, ficaram os seus
bons (e pouco divulgados) discos, já que a totalidade
delas sucumbiu frente à falta de interesse do público
e mesmo à extinção de um desgastado
rótulo celebrizado naqueles anos (vamos evitar
citá-lo, certo?). O Earth foi um desses estranhos
que conviveu à margem do fenômeno Seattle,
embora tenha presenciado de perto a movimentação
produzida naquele período. Entretanto, sua trajetória
acabou divergindo das de outros desconhecidos quando sua
obra foi resgatada nesta década, trazendo-a de
volta às atividades quando seu fim já parecia
definitivo.
Formado por Dylan Carlson, o Earth pode ser considerado
uma banda-de-um-homem-só, já que Carlson,
além de ter sido o único integrante fixo
na história da banda, foi o responsável
pelas composições e direcionamento do grupo.
Junto com Slim Moon e Greg Babiour, Carlson idealizou
em Olympia, no início dos anos 90, uma proposta
que não correspondia com o som que dali a pouco
estaria explodindo nas lojas de discos de todo o planeta.
Quando o líder mudou-se para Seattle, Moon e Babiour
foram substituídos por Dave Harwell e Joe Preston,
e enquanto os futuros bem-sucedidos da cidade misturavam
suas referências com a infalível combinação
guitarra-baixo-bateria, o Earth deu seus primeiros passos
usando apenas duas guitarras e um sintetizador. Foi a
partir dessa idéia e com essa formação
que o trio gravou seu primeiro disco, “Extra-Capsular
Extraction”, em 1991 pela então emergente
SubPop. A abordagem do Earth se fez clara com a referência
onipresente de Black Sabbath, na forma de riffs longos
e carregados, com pouca interferência dos vocais
e de uma tímida bateria. Apesar de um tanto díspar
em relação ao que acontecia na época,
“Extra-Capsular Extraction” apenas sugeriu
o que viria na seqüência.
Harwell, Carlson e Preston: os culpados pelo primeiro
disco. |
Com a saída de Preston (que integrou-se aos Melvins),
Carlson e Harwell partiram para a gravação
do disco mais cultuado da banda: “Earth 2”,
de 1993. Difícil precisar se a sonoridade do álbum
refletiu a ausência de um terceiro membro na formação
ou materializou as intenções visionárias
de Dylan, mas “Earth 2” acabou soando como
nenhum outro disco havia soado até então.
Munida de apenas uma guitarra e um baixo, a dupla encheu
setenta e três minutos de longos e distorcidos riffs,
criando uma massa sonora que hoje é rotulada como
“heavy drone”. O senso melódico de
“Earth 2” puxa o ritmo para a lentidão,
onde a ausência de vocais e bateria é soterrada
pelos repetitivos e massivos riffs, numa ode ao ar maquiavélico
do Black Sabbath. Conceitualmente, “Earth 2”
é um marco para a música experimental. Aquilo
que muitos artistas haviam desenvolvido como música
ambiente ganhou uma conotação particular
nas mãos de Carlson e Harwell, através da
junção do ambient com o metal. Seu legado
só foi se manifestar nos anos seguintes, quando
bandas como o SunnO))) criaram discos baseando-se nos
conceitos daquela obra. Curiosamente, na época
em que foi lançado, o desempenho comercial do álbum
não sugeriu sua importância, uma vez que
sua repercussão foi irrelevante junto ao público.
Por mais que os ouvintes estivessem dirigindo seus interesses
para artistas mais desafiadores, “Earth 2”
estava muito adiante em relação ao que um
ouvinte convencional poderia consumir.
A frieza com que “Earth 2“ foi recebido refletiu
nos dois discos seguintes da banda. O terceiro, “Phase
3: Thrones And Dominions”, trouxe consigo alguns
reflexos da impaciência da então celebrada
SubPop com o formato musical explorado por Carlson. Gravado
após a saída de Harwell, o disco contou
com Tommy Hansen e Ian Dickson nas guitarras, além
de Rick Cabern na bateria da faixa “Site Specific
Carnivorous Occurence”. Seu lançamento só
aconteceu em 1995, após desavenças com o
selo, e refletiu a necessidade da banda se encaixar num
formato mais vendável. Faixas mais curtas, guitarras
mais limpas e melodias assimiláveis tentaram aproximar
o Earth daquilo que a audiência esperava de uma
banda oriunda de Seattle. Ainda assim, “Phase 3”
não abandonou a abrasividade explorada nos trabalhos
anteriores e tampouco significou uma entrega total a interesses
mercadológicos, devido aos resquícios de
experimentalismo presentes em algumas faixas. Já
o disco seguinte, “Pentastar: In The Style Of Demons”
(1996), foi bem mais emblemático para a mudança
de rumos do Earth. Gravado com Shean McElligot, Michael
McDaniel e Mike Deming, concretizou um passo muito significativo
em direção à aceitação
comercial. Sua abordagem pouco lembra a penumbra monolítica
de “Earth 2”: “Pentastar” usou
ritmos familiares, riffs mais velozes e vocais nítidos,
incluindo até mesmo uma cover de Jimi Hendrix em
seu tracklist (“Peace In Mississipi”). Não
fosse obra de Dylan Carlson, “Pentastar” se
confundiria com uma dezena de álbuns lançados
na época. Ainda assim, o resultado não se
encaixou exatamente no que o público queria. Por
mais esforço que tenha sido feito, a vocação
para figurar ao lado de medalhões multi-platinados
não estava escrita nos cromossomos do Earth. Assim,
a irrelevância desse disco no mercado unida à
impaciência da SubPop e à fadiga da cena
de Seattle decretaram a suspensão das atividades
da banda.
Dickson e Carlson em 1995, remando contra a maré.
|
A aparição de Dylan Carlson no documentário
“Kurt & Courtney” (1998), bem como a inclusão
de alguns trechos de músicas do Earth no mesmo
foram o início da redescoberta do grupo. Amigo
pessoal de Kurt Cobain (e presumivelmente o responsável
pela compra do revólver que tirou a vida de Kurt),
sua aparição alertou o público sobre
a relação entre o Earth e o líder
do Nirvana, estabelecendo um paralelo entre Seattle e
Carlson. Paralelamente, o registro ao vivo “Sunn
Amps And Smashed Guitars”, originalmente editado
em 1995, recebeu uma nova versão, contando com
sobras do primeiro disco – entre elas – “Divine
And Bright”, com vocais de Cobain. Ciente do interesse
incipiente em seu trabalho, Carlson recrutou Adrienne
Davies e trouxe o Earth de volta à atividade. O
que se sucedeu a seguir estabeleceu a segunda fase da
carreira do Earth, onde a banda reformou sua sonoridade,
apresentando uma proposta inesperada até mesmo
para o mais ardoroso fã.
Carlson e Davies partiram para a estrada mais abertos
a outros gêneros sonoros e possibilidades instrumentais.
Contando com a participação de músicos
incidentais, o Earth limpou o som de suas guitarras, desacelerando
novamente seus ritmos com as batidas marciais das baquetas
de Davies. Paralelamente às apresentações,
alguns bootlegs e pequenos trabalhos em selos independentes
foram editados, como o relançamento controverso
de "Earth 2" pela Autofact e os discos ao vivo
"070796Live", "Earth / KK Null" e
"Living In The Gleam Of An Unsheathed Sword",
que registraram a gradual evolução do som
rumo a uma concepção diferente da conhecida
até uns anos atrás. A influência do
trabalho deles confirmou-se com o lançamento de
"Legacy Of Dissolution" (2005), um tributo em
que artistas contemporâneos como Mogwai, Autechre
e Justin Broadrick remixaram músicas do catálogo
da banda.
O Earth em sua fase mais recente:
paisagens áridas do velho-oeste. |
O
período de dez anos sem que o Earth produzisse
um álbum novo teve fim em 2005, quando
a gravadora Southern Lord atendeu as crescentes
expectativas do público lançando
"Hex; Or Printing In The Infernal Method".
Mais do que uma afirmação das mudanças
sonoras sugeridas nas últimas turnês
do grupo, o disco revelou uma banda totalmente
reformulada, indiferente ao seu passado ensurdecedor.
Carlson desenvolveu uma sonoridade mais ampla
e rebuscada, trocando os pedais por instrumentos
tradicionais da música americana como guitarras
Telecaster, slides e até tímidos
sopros. |
Do velho Earth, a manutenção do formato
de longas canções desaceleradas. O interessante
a respeito de "Hex" é a habilidade da
banda em abandonar as distorções e ainda
assim manter a atmosfera maligna de suas músicas,
que passaram a transmitir uma imagem árida do sangue
derramado no deserto norte-americano, referenciando trilhas-sonoras
de filmes western. O álbum foi a cartada final
para o resgate de um prestígio, celebrado nas turnês
de divulgação promovidas junto com bandas
como Boris e SunnO))). O cultuado selo aRCHIVE imortalizou
um desses momentos lançando o raro "Live Hex;
In A Large City On The North American Continent",
um registro da nova proposta sonora do Earth em contato
com a platéia.
Foi necessário um hiato de quase dez anos sem produzir
para Dylan Carlson levar o Earth a uma outra esfera. Para
a sorte dos fãs, ele parece ter se sensibilizado
com a boa receptividade, uma vez que já lançou
um segundo trabalho de estúdio registrando sua
nova fase. "Hibernaculum" foi disponibilizado
em março de 2007 novamente pela Southern Lord,
reunindo quatro músicas do catálogo antigo
da banda reformuladas segundo a orientação
sonora de "Hex". O item ainda inclui um DVD
com entrevistas e trechos da turnê européia
do grupo. Como se isso não bastasse, já
está anunciado para o final de 2007 um novo disco
com composições inéditas, que deverá
contar com a participação do referencial
guitarrista Bill Laswell.