"There's
no time for the hatred, only questions:
What is love? Where is happiness? What is life? Where is peace?
Where will i find the strength to bring me release?
Tell me where is the love in what your prophet has said!
Man, it sounds to me just like a prison for the walking dead!
Oh, i've got a message for you and your twisted hell!
You better turn around
& blow your kiss goodbye
to life eternal, angel..."
JEFF BUCKLEY
"Love is not a victory march,
It’s a cold and it’s a broken hallellujah…"
LEONARD COHEN
Foi uma das mortes mais misteriosas
que o rock já conheceu. Conta a lenda que, na noite
de 29 de maio de 1997, Jeff Buckley, 30 anos de idade, bebeu
um pouco de vinho, entrou no rio Mississipi completamente
vestido, cantando alto um clássico do Led Zeppelin
e depois de alguns minutos nadando de costas, desapareceu
debaixo d'água - deixando pasmo o amigo que tinha ficado
ali, à margem, só observando a extravagância
do companheiro... dias e dias depois, o cadáver foi
descoberto boiando nas águas do lendário curso
d'água, aquele mesmo que testemunhou o nascimento do
blues e que, nesse dia, servia de leito funerário para
um pequeno gênio da música americana... e até
hoje, sem achar resposta, ficamos a nos perguntar: o que diabos
aconteceu?
As investigações
da polícia concluíram por "afogamento incidental",
já que nenhum sinal de intoxicação química
foi encontrado no corpo de Jeff e a hipótese de suicídio
parecia improvável - pois há jeitos mais simples
de se matar do que se afogar desse jeito, e ainda mais sem
amarrar uma rocha aos pés, certo? O fato é que,
naquela noite, o mundo perdia um dos mais talentosos cantores
que tinham surgido nos anos 90: Jeff Buckley, filho do mito
do folk Tim Buckley, deixava atrás de si um pequeno
legado - mas um que não pararia de emocionar, conquistar
corações e influenciar dúzias de músicos
e bandas. As dez músicas de Grace (além das
quatro do Sin-é EP) são o único documento
musical que Jeff Buckley lançou em vida. Depois, é
claro, como é costume, uma avalanche de lançamentos
póstumos chegariam às lojas, incluindo o inacabado
segundo disco Sketches For My Sweetheart The Drunk, alguns
álbuns ao vivo (com destaque para o ótimo Mystery
White Boy), coletâneas de Eps (Grace EPs) e relançamentos
de projetos antigos (Songs For No One, com Gary Lucas).
A morte trágica de Jeff,
que parecia ecoar o fim de seu pai, morto após uma
overdose de heroína em 1975, aos 28 anos, foi o que
bastou para selar seu destino como um mito de primeira grandeza
- e hoje não há dúvida de que ele é
um dos maiores ídolos cult dos anos 90 e Grace um dos
discos mais peculiares, tocantes e lindos da década.
O sucesso comercial nunca veio de verdade (ele era bom demais
para o mainstream...), mas Jeff Buckley conquistou uma série
de fãs famosos que ajudaram a fazer seu elogio e propagandeá-lo:
de Patti Smith (que convidou-o para um dueto em "Beneath
The Southern Cross") a Jimmy Page (que o considerava
um dos melhores vocalistas surgidos nos últimos 20
anos), de Brad Pitt (que considera a música de Buckley
"uma obsessão" e que esteve cotado para encarná-lo
na telona) a Chris Cornell (que gravou "Wave Goodbye",
linda música de seu único disco solo, em homenagem
e tributo à Jeff), de Elizabeth Frazer (a vocalista
do Cocteau Twins) a Bono Vox... entre muitos outros.
A história, em resumo,
é a seguinte: Jeff Buckley deixou sua Los Angeles natal
para tentar a sorte em Nova York no começo dos anos
90 e deu um jeito para se inserir na cena folk e boêmia
do Greenwich Village - onde tocou por alguns anos em vários
barzinhos, cafés e boates, lentamente construindo uma
procissão de fiéis seguidores, até ser
descoberto por uma grande gravadora e lançar, em 1994,
este Grace. Steve Berkovitz, um dos chefões da Sony
Music, revelou em entrevista à BBC (para o documentário
Everybody Here Wants You) o tamanho da empolgação
que Buckley causou. Era crença geral na gravadora de
que ele se inscreveria na história do rock junto a
nomes míticos de primeira grandeza: "Acho que
a Columbia e a Sony meio que pensaram que a coisa seria: Dylan
-> Springsteen -> Buckley". Não somente
ele era o filho de um grande mito musical do passado, como
também tinha um talento próprio inegável
- não é à toa que tinha assinado um contrato
de um milhão de dólares (!!) com a Columbia...
E Grace, apesar de não
ter virado um sucesso de vendas espantoso (“Last Goodbye”
foi a única música a se tornar um semi-hit),
foi amplamente elogiado pela crítica e parecia ser
apenas a primeira pedra na construção de um
edifício que teria tudo para ser monumental. Todo mundo
pensava que Jeff Buckley iria lançar uns 30 discos,
gravar até fazer 70 anos de idade e consagrar-se como
um dos gigantesco deus do rock - sim, na altura de um Dylan,
de um Springsteen, de um Van Morrison... Mas a morte, ah!...
a morte!...
* * * * *
Convivo com Grace há
pelo menos uns 5 anos, o que já basta para dizer que
somos amigos de longa data, íntimos, inseparáveis,
que não brigam jamais - e é incrível
que eu não tenha enjoado nem um pouco de um disco que
já escutei na íntegra dezenas e dezenas de vezes.
Há alguma coisa aqui que impede que essas músicas
envelheçam, algo que não deixa a familiaridade
se tornar enjôo, algo aqui permanece sempre novo, sempre
fresco, sempre tocante... eu não acho difícil
me imaginar com 60 anos de idade e ainda gostando de Grace
tanto quanto sempre gostei. Mais fácil do que ser um
velhinho que curte Nirvana, isso é... :)
Jeff Buckley é certamente
um dos meus cantores prediletos de todos os tempos: Aquela
voz doce e suave, que não deixa de ser poderosa e sexy...
aqueles falsetes viajantes (e olha que eu não sou lá
muito fã de falsetes...), controlados com uma técnica
espantosa... aquela coragem para passar do sussurro que beira
o silêncio ao grito mais primal... aquela ousadia para
ir até o limite extremo da voz, quando parece que as
cordas vocais já estão prestes a se rasgar...
é de deixar boquiaberto.
Sempre me deixou pasmo, por
exemplo, a maneira como ele conseguia prolongar a voz - dar
um "sustain" - por um tempo incrivelmente longo,
como no final de "Grace", quando ele tira do fundo
da alma um inacreditável grito - que sempre me dá
uns calafrios lá no fundo da alma, lá dentro
dos ossos. E, como nota muito bem o Gary Marshall, Jeff Buckley
nunca se deixou dominar pelo exibicionismo ególatra
que contamina muitos vocalistas de talento ("he never
let his ego get in the way of the songs and Grace is mercifully
free of the vocal histrionics that plague most naturally talented
singers", diz Gary). E o melhor: ele parecia ter uma
conexão íntima e profunda com as letras e nunca
cantava palavras que não tivessem uma ressonância
sentimental. "I need to inhabit every bit of a lyric",
disse ele em outra entrevista, "or else I can't bring
the song to you - or else it's just words..."
Sim, Grace está longe
de ser um disco "homogêneo". O mesmo garoto
que cantava aos sussurros a melancólia balada "Hallellujah"
entrava num transe cobainiano e berrava como um endemoniado
sobre um fundo quase speed-metal em "Eternal Life"...
o mesmo cara que cantava com voz afeminada e operística
"Corpus Christi Carol" soltava a voz como um bom
rock star no refrão explosivo de "Mojo Pin"...
O que levou alguns a acharem Buckley um cara incoerente e
que não soube dar unidade ou continuidade ao álbum.
Não concordo. Pra mim a coisa faz todo o sentido e
a variedade de estilos em Grace só comprova a variedade
dos gostos e habilidades de Buckley, um artista realmente
plural e um vocalista ultra-eclético e de voz realmente
abençoada. O lance é que ninguém aprende
a cantar desse jeito: essa voz é um dom. É graça.
Tim Buckley, o paizão,
também era um cara bastante eclético e que usava
sua voz com uma radicalidade extrema – mas acho bobagem
reduzir a música do Jeff a uma mera continuação
da obra do seu velho (que Jeff, aliás, mal conheceu,
que o influenciou muito pouco e que morreu quando ele era
ainda criança). Apesar da semelhança de voz
inegável (a genética explica...), Jeff Buckley
foi pescar suas influências em outros lugares: no Led
Zeppelin e nos Smiths, em Van Morrison e Janis Joplin, no
Big Star e no MC5, na diva francesa Edith Piaf e no paquistanês
Nusrat Fateh Ali Khan... Page & Plant, como ele sempre
confessou, tiveram para ele uma influência muito mais
marcante do que a música e a voz do pai. "A primeira
voz pela qual me apaixonei", disse em uma entrevista,
"foi aquela do jovem Robert Plant" - e ele completava,
engraçadinho: "na época em que ele soava
como a Janis." (É um momento hilário: "He
was trying to sound like Howlin' Wolf, but he didn't. He sounded
like some fucking animal.")
O disco inteiro é excelente
e eu nunca tive vontade de pular música nenhuma, mas
é claro que tenho minhas prediletas. “Grace”,
a música, é um fenomenal exercício de
exorcismo da morte e tem um dos clímaxes mais arrepiantes
que eu conheço; “Lover, You Should Have Come
Over” me lembra as melhores coisas do The Queen Is Dead
dos Smiths e é, fácil fácil, uma das
minhas 10 músicas prediletas em todos os tempos; o
grunge “Eternal Life”, que entra rasgando a tranquilidade
do disco com guitarras distorcidas e gritos irados, é
um das músicas de rock pesado que eu mais admiro e
que mais me emocionam entre todas que já ouvi –
e tem outro daqueles clímaxes inacreditáveis...
As 3 covers também foram
muito bem escolhidas e, melhor que isso, são muito
mais do que meras "cópias" das originais:
Jeff transformou cada uma delas em uma coisa absolutamente
sua. A lindíssima versão para "Hallellujah",
de Leonard Cohen (já gravada também por John
Cale), é um daqueles casos de cover que ultrapassa
a original de tal maneira que fica em seu lugar como a versão
definitiva e incomparável - mais ou menos do jeito
que foi com a versão de Hendrix para "All Along
The Watchtower", de Bob Dylan. Alguma pessoa em sã
consciência acha que a original se compare com a transformação
genial que Jimi impôs à música? E alguém
consegue preferir a tediosa versão de Cohen à
releitura de Buckley? O standard jazz "Lilac Wine"
(famoso na voz de Nina Simone) e o exercício vocal
quase operístico de "Corpus Christi Carol"
(de Benjamin Britten) também ficaram excelentes.
* * * *
Grace é um disco atormentado,
sim, cheio de angústia e melancolia, onde a voz é
quase sempre o veículo para um lamento todo dolorido
- e é claro que eu não gostaria tanto assim
dele sem toda essa tristeza, essa solidão, essas sombras,
essas músicas todas mergulhadas na penumbra... Tenho
uma queda irresistível por arte melancólica.
E Jeff Buckley escreveu algumas das músicas de amor
mais emocionantes que eu já ouvi - principalmente porque
são algumas das poucas que eu consigo reconhecer como
verdadeiras e genuínas, que expressam sentimentos que
eu já senti e reconheci, que fogem dos clichês
batidos e rebatidos na história do pop e que não
ficam contando a lorota de que o amor é todo bonitinho,
o reino dos arco-íris e das borboletas, aquela porcaria
kitsch que contamina 90% das músicas de amor escritas
na história da humanidade. A coisa em Grace é
diferente, como já mostra o verso de "Hallellujah"
que coloquei na epígrafe: "Love is not a victory
march..."
Em "Last Goodbye",
é a morte do amor ("I hate to feel the love between
us has died - but it's over...") e a distância
e a dificuldade de vencer as barreiras entre os amantes ("Why
can't we overcome this wall? Well, maybe it's just because
i didn't know you at all...") o que ele narra; em "Lover...",
é a ânsia por um amor impossível de satisfazer
("I'm broken down and hungry for your love, with no way
to feed it... Oh, child, where are you tonight? You know how
much I need it...") e a falta de experiência e
de sabedoria ("Maybe I'm just too young to keep good
love from going wrong..."); em "So Real", é
simplesmente o medo de amar, confessado com uma simplicidade
tocante ("I love you, but i'm afraid to love you... I'm
afraid to love you...")... Conheço poucos versos
que pareçam mais sinceros, mais humildes e mais verdadeiros.
Não tem jeito: a gente
só gosta mesmo daqueles que são parecidos com
a gente - e eu, de certo modo, sempre me senti meio irmão
de Jeff Buckley, como se a gente compartilhasse os mesmos
sentimentos, mesmas dificuldades, mesmas angústias,
mesmas solidões. Lembro das inúmeras noites
(e esse é um essencialmente um disco noturno!) em que
eu tocava esse disco, no escuro, deitado na cama, perdido
em pensamentos e em sonhos, e certos versos do disco pareciam
descrever exatamente o que tava acontecendo em mim. "My
body turns and yearns for a sleep that will never come...".
Ou: "It's never over, she's the tear that hangs inside
my soul forever..." Ou: "And as your fantasies are
broken in two... Did you really think this bloody road would
pave the way for you?"
Ouvir o canto frequentemente
lamentoso de Jeff não é algo que me deprima;
é algo que me eleva, que me purifica - porque o lirismo
e a beleza estão lá para redimir tudo. A morte
é também um fantasma presente em vários
cantos do álbum, mas nunca a coisa descamba pra morbidez.
A mensagem de "Eternal Life" é que devemos
aceitar nossa finitude, por mais amargo que isso seja ("You
better blow your kiss goodbye to life eternal, angel..."),
já que a morte, como canta ele em "Grace",
não é assim tão má: "Não
tenho medo de ir", canta Jeff, "Ela me lembra de
toda a dor que vou deixar pra trás...". E é
claro que ele sabe que está condenado a ter seu nome
esquecido, como todos nós ("I feel them drown
my name..."), mas que importa isso? Pode-se esquecer
do esquecimento a que estamos todos destinados - e o que melhor
do que isso senão o amor?
And I feel them drown my name
So easy to know and forget with this kiss...
* * * * *
Grace não foi somente
um mero princípio promissor de uma carreira que tinha
tudo pra ser brilhante. Foi sim um clássico instantâneo
e reconhecido como tal antes mesmo do fim trágico de
Jeff (não é esse um daqueles casos "vamos
falar bem do cara só porque ele morreu"...). Essas
10 canções foram o suficiente para escrever
seu nome na história da música nos anos 90 -
e, se me permitem um pouco de sentimentalismo, mesmo que não
houvesse mais gravação alguma disponível
(felizmente há bastante material, como provam os vários
lançamentos póstumos), só Grace já
bastaria para que eu levasse Jeff Buckley e sua música
primorosa pra sempre inscritos no coração...
(UI.)
Sim, a vida de Jeff, breve
como foi, e tão tragicamente interrompida, não
deixa com isso de ter sido completa e de ter rendido lindos
frutos. Sim. Mas como evitar a imaginação dos
futuros que nunca serão? Ah, tudo o que ele poderia
ter sido... Nós todos, fãs de Jeff Buckley (mas
não só dele: de Kurt Cobain, de Elliott Smith,
de Nick Drake, de Schubert... e de tantos outros que morreram
ainda na juventude, e com tanto ainda a dizer), não
conseguimos evitar essa sensação de termos perdido
demais com sua morte - apesar de termos ganhado tanto com
sua vida...
Ah, sim, tudo o que ele poderia
ter sido, se ao menos não tivesse submergido naquelas
águas do Mississipi, tão novo, tão cedo...
Mas são coisas da vida - e muito da beleza trágica
de Grace está em saber que o cara que deu à
luz esta pérola não passou mesmo de uma estrela
cadente, que passou pela Terra espalhando pelo céu
um brilho efêmero mas memorável, antes que a
morte, como sempre faz, tenha rasgado bruscamente um trabalho
em andamento. É um destino trágico, sim, que
nos sugere que nossas vidas nunca vão passar de rascunhos
que nunca teremos tempo de passar à limpo... mas que
belos rascunhos saem, às vezes!
E foi só Jeff Buckley
que se foi cedo demais? Não somos todos que nos vamos
sempre antes da hora? Tenho essa sensação de
que, quando chegar a nossa vez de ir embora, não importa
quando for, será sempre cedo, sempre cedo demais...
e ainda teríamos muito a fazer, muito a dizer, muitos
erros a consertar, muitas coisas a melhorar... Pelo menos,
se isso serve de consolo, é bom saber de algo que ficou
dessa vida - e algo de magnífico. E é bom saber
que sempre teremos Grace e suas dez músicas nos fornecendo
um interminável alimento para a saudade...
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