Uma das características do início dessa
década foi o surgimento de vários focos
de música segmentada, ao contrário de cenas
maiores e prolongadas como o grunge nos anos 90. A mídia
tentou, nessa mudança de velocidade com a qual
as coisas passaram a acontecer, organizar as coisas dentro
dos paradigmas existentes até então, sendo
em poucos anos desafiada a encontrar maneiras de conduzir
uma explosão de música espalhada por milhões
de computadores. Essa pequena segmentação
em pouco tempo se mostrou momentânea, incapaz de
definir um panorama onde artistas africanos coexistem
nos MP3 players com medalhões como o Elvis Presley.
A primeira fase do Liars foi encaixada nessa tentativa
de adequação a uma tendência, mas
as etapas seguintes trataram de revelar a verdadeira proposta
dos nova-iorquinos: música para os mais excêntricos
Winamps.
Angus Andrew, Aaron Hemphill, Pat Nature e Ron Albertson
formaram o Liars em Williamsburg, região do Brooklyn
que no início da década foi pinçada
pela mídia como uma das que "estavam construindo
o rock do novo milênio". As apresentações
incendiárias do quarteto eram reverenciadas como
das mais imperdíveis, responsáveis pela
contextualização do Liars no que se convencionou
como "cena nova-iorquina" (que contou com Rapture,
Strokes, Yeah Yeah Yeahs, Interpol e Walkmen, entre vários
outros). Embora musicalmente divergentes entre si, a imprensa
relacionou essas bandas como a primeira boa safra do que
a década reservava para os ouvintes.
Mesmo
respaldado por turnês com artistas nada
convencionais como o Sonic Youth e o The Jon Spencer
Blues Explosion, o primeiro disco do Liars, "They
Threw Us All In A Trench And Stuck A Monument
On Top", acabou relacionado com o "efeito
NY", mais precisamente com o rótulo
"disco-punk". A atmosfera proveniente
dessa rotulagem marcou essa primeira fase da banda,
mesmo que o álbum apresentasse um formato
mais avançado do que a simples idéia
de conter músicas de abastecimento para
pistas de dança descoladas. Apesar dos
ritmos dançantes e roqueiros onipresentes,
o disco mantinha uma linguagem suja e desvinculada
da aura acessível equivocadamente atribuída
a ele. |
Reconhecemos que a indumentária da
banda não favorece nosso trabalho de
catequização |
Pouco se ouviu a respeito deles nos anos seguintes, embora
tenham editado três ruidosos EPs (um deles em conjunto
com os vizinhos do Oneida). Durante esse período,
Angus e Aaron dispensaram Paul e Ron (que depois formariam
o No Things), com o argumento de que a dupla remanescente
era a verdadeira responsável pelas composições
e que a ausência de Paul e Ron eliminava a necessidade
de outros músicos compartilhando as decisões
musicais da banda. No início de 2003 Angus mudou-se
com sua namorada (Karen O., do Yeah Yeah Yeahs) para uma
casa nas florestas de New Jersey, sendo acompanhado por
Aaron e o amigo Julian Gross quando Karen partiu em turnê
com sua banda. Era chegado o momento de produção
do segundo disco, e o Liars conseguiu convencer a Mute
Records de que ao invés de fazê-lo em frios
e caros estúdios, a banda produziria melhor no
porão da casa em que estava estabelecida. Com sinal
verde da Mute, o trio assessorado por David Sitek (do
aclamado TV On The Radio) decidiu eliminar os laços
com os rótulos que lhe foram aplicados e buscou
uma sonoridade desafiadora que revolucionaria a imagem
da banda.
Não leia essa bio durante seu expediente |
Influenciados
por artistas de eletrônica como o Matmos,
passaram a flertar com o experimentalismo e as
possibilidades oriundas da simbiose entre máquinas
e ruídos analógicos, diferentemente
do setup mais convencional utilizado no passado.
Mas foi através de uma pesquisa equivocada
na internet que Aaron deparou-se com o ingrediente
principal do disco que estava sendo criado. Ao
digitar equivocadamente a sentença "Brocken
Witch", deparou-se com uma série de
páginas dedicadas ao Walpurgisnacht, uma
tradicional celebração alemã
para as bruxas da região Brocken e o folclore
oriundo da idade média. |
O efeito das leituras chegou aos colegas, que se integraram
na tarefa de transformar os contos seculares de caça
às bruxas no tema do álbum (auxiliados por
eventuais caminhadas à noite no meio da floresta).
Essa influência se embrenhou no trabalho da banda
de tal forma que as lendas malignas foram complementadas
por uma sonorização sinistra e sombria,
fazendo de "They Were Wrong So We Drowned",
o segundo LP do Liars, um dos discos mais criativos de
2004. Nesse sentido, a banda não só cumpriu
a tarefa de apagar o passado, como acabou reservando sua
poltrona no clube dos artistas que a partir dali passariam
a responder pela vanguarda, o que lhes custou a antiga
audiência movida por rótulos momentâneos.
Suas performances no palco foram igualmente intrigantes,
podendo ser conferidas até mesmo no Brasil durante
o festival paulista Nokia Trends em setembro de 2004.
O Liars promoveu seu segundo disco de forma tão
massiva na Europa que Angus eventualmente transferiu-se
para Berlim, atraído, entre outros motivos, pelo
baixo custo de vida na cidade. Aaron e Julian o acompanharam
gradualmente, a partir do momento em que o terceiro disco
do trio começou a ser forjado em terras alemãs.
O primeiro material produzido logo após "They
Were Wrong So We Drowned" aproximou-se da sonoridade
ambient, e embora tenha sido originalmente direcionado
para um projeto visual a ser lançado na carona
do segundo disco, a banda se viu exaustivamente alternando
produções musicais com gravações
em vídeo. Quando percebeu, tinha levado a experiência
para um outro patamar, onde todo o tempo estava disponível
para a elaboração de um produto que apontasse
para territórios artísticos inexplorados.
Enquanto
a Mute pedia tempo para conceber o lançamento
do trabalho, que exigia a inclusão de um
DVD como complemento da experiência sonora,
a banda seguiu polindo o novo material em exaustivas
sessões de estúdio. A característica
principal das novas músicas estava na sonoridade
massiva das baterias, que atuavam quase como um
quarto integrante da banda. Para chegar a essa
resolução, foi localizado um antigo
estúdio pertencente ao ex-governo comunista
alemão, utilizado em gravações
de programas de rádio. O complexo oferecia
salas de gravação específicas
para sonoridades peculiares, concebidas para a
produção de radionovelas. |
Angus Andrew e o misticismo moderno |
A banda gravou seu disco nesse local a um custo irrisório
e se esmerou em obter o máximo de possibilidades
que o espaço lhe proporcionou. É esse exercício
de experimentação de sons que delineia "Drum's
Not Dead", o terceiro e mais audacioso trabalho dos
Liars. Acompanhado de um DVD com três versões
visuais do disco, o álbum deixa as bruxas de lado
e aborda a polaridade entre os sentimentos que cercam
o processo de criação da banda: a confiança
e a dúvida (representados respectivamente por "Drum"
e "Mt. Heart Attack"). Parece difícil
que eles tenham conseguido conciliar tantas idéias
arrojadas em um único pacote, mas o lançamento
de "Drum's Not Dead" foi acompanhado de muitos
elogios por parte da imprensa virtual, fazendo dele um
dos principais discos a serem escutados no ano.
A seqüência de metamorfoses sofridas pela banda
mudou radicalmente sua imagem, efeito perseguido e homologado
com pelo menos dois belos álbuns. O ano de 2006
será dedicado às turnês de divulgação
de "Drum's Not Dead" e tudo indica que os Liars
não serão esquecidos nas listas de final
de ano. Com ouvintes cada vez mais exigentes e interessados
em música criativa e inovadora, são grandes
candidatos a marcar os playlists da temporada.
Vicente
Moschetti
julho/2006