O
prestígio do qual goza o Mission of Burma não
é por acaso. Sua música é usualmente
associada com "arte" (ignorando a redundância
explícita) em frequências consideravelmente maiores
do que a quantidade de vezes em que o mesmo pode ser dito
para a grande maioria das bandas ditas do mesmo gênero
- seja este o punk-rock, o pós-punk, o hardcore, ou
mesmo o rock 'n' roll. Eventualmente, até o rótulo
"art-rock" é imputado ao grupo, resumindo
bem a questão. Outro fator curioso sobre o Mission
of Burma é sua história: o grupo, nascido no
fim da década de 70, desmantelou-se em 1983 e voltou
a se reunir duas décadas depois,
não para uma reles reunião caça-níqueis,
mas sim para continuar sua carreira - afinal, a interrupção
deu-se em função de um problema incontornável
na época: a audição de seu guitarrista
estava danificando-se devido aos altos decibéis produzidos
por eles no palco.
Essa trajetória peculiar
teve início em 1979, em Boston, no estado americano
de Massachusetts. A primeira formação da banda
contava com o guitarrista Roger Miller, o baixista Clint Conley
e o baterista Peter Prescott (com todos dividindo a responsabilidade
de cantar), mas logo ganhou o reforço de Martin Swope.
Swope, ex-companheiro de universidade de Miller, tinha o gosto
incomum por brincadeiras com loops, remixagens e truques de
estúdio similares. No início, ele costumava
ser apenas o engenheiro de som da banda ao vivo, mas logo
passou a ser tratado como um membro da forma convencional.
A confluência das referências
musicais primárias de cada um desses
caras pode ser a principal responsável pela riqueza
do som do Mission of Burma. Enquanto Miller tem em seu currículo
escolar aulas de piano e composição, Swope trazia
de Michigan, seu estado natal, as marcas de Stooges e MC5.
Clint Conley e Roger Miller tinham ainda em seu passado o
Moving Parts, banda de punk-rock de Boston. O post-punk de
grupos como Gang of Four e Pere Ubu e a no-wave de Nova York
também são citados com frequência como
movimentos mentores do Burma, que logo estaria encabeçando
ao lado de bandas como Sonic Youth, Hüsker Dü, R.E.M.
e Replacements um primeiro levante do
rock alternativo rumo às massas - ainda que devido
à sua maior sofisticação musical, além
da própria carreira singular já comentada, a
banda não seja normalmente colocada no mesmo nível
de popularidade destas outras citadas.
Data
de junho de 1980 o primeiro registro em disco do Mission of
Burma: o single "Academy Fight Song", lançado
pela Ace of Hearts. Sua primeira música conhecida é
também um de seus maiores clássicos (curiosidade:
Academy Fight Song figurou nos sets dos shows do R.E.M. na
época do disco "Green"). A prensagem inicial
de 7.500 cópias esgotou-se rapidamente, e logo a banda
voltava aos estúdios para trabalhar em novo material.
O resultado foi o EP "Signals, Calls and Marches",
lançado em julho de 1981. Somando-se a estes dois excepcionais
EPs, as performances ao vivo do Mission of Burma contribuíam
para aumentar cada vez mais o prestígio do grupo no
circuito alternativo norte-americano.
Em 1982
foi lançado o primeiro LP, "Vs", precedido
por um single para a música "Trem Two". O
álbum é motivo de elogios efusivos de grande
parte da crítica e o Mission of Burma estava prestes
a ganhar o mundo. Mas no ano seguinte a banda se viu obrigada
a encerrar suas atividades devido a um problema auditivo de
Miller, que o impossibilita de continuar tocando ao vivo:
um zumbido no ouvido agravava-se a cada vez que ele subia
no palco e ficava exposto ao altíssimo som que jorrava
das caixas acústicas ao seu lado. O fim aconteceu não
sem antes realizarem uma turnê de despedida, que renderia
o disco "The Horrible Truth About Burma", lançado
em 1985.
Apesar
da banda não mais existir, seus lançamentos
continuaram por algum tempo, enquanto o baú de gravações
da banda permitia: para começar, em 1987, o EP "Mission
of Burma", pela Taang!, reunindo algumas sobras de estúdio
não lançadas anteriormente. No mesmo ano saiu
"Forget Mission of Burma", novamente pela Taang!,
reunindo faixas gravadas em diversas sessões de estúdio
realizadas pela banda entre 1979 e 1982. Algumas dessas faixas
receberam novo tratamento em estúdio. Em 1988 temos
a coletânea "Mission of Burma", da Rykodisc,
com 24 faixas, com destaque para o cover de 1970, do Stooges.
Em 1993, a Taang! lançou "Peking Spring",
que é basicamente uma expansão do EP auto-intitulado
lançado em 1987. Esses lançamentos todos, a
despeito de seus maiores ou menores níveis de relevância,
foram ajudando a manter viva a boa reputação
do Mission of Burma, principalmente a partir do momento em
que o rock alternativo saiu dos guetos para assaltar o mundo,
entre as décadas de 80 e 90. Nessa época, citar
o Burma como influência era um atestado de idoneidade
e conhecimento, e servia para abalizar uma segunda geração
do rock alternativo que vinha surgindo. Que o digam Nirvana,
Yo La Tengo, Soul Asylum, Pixies, Superchunk, entre diversos
outros.
Em paralelo a essa existência
virtual do Mission of Burma, seus ex-membros iam tocando suas
carreiras. Miller participou de alguns projetos, como o Birdsongs
Of The Mesozoic (junto com Swope, antes deste se mudar para
o Havaí e abandonar o mundo da música) e o Alloy
Orchestra (que compunha somente trilhas sonoras), sempre trabalhando
unicamente em estúdio, evitando apresentações
ao vivo. O baterista Peter Prescott fez parte de alguns grupos,
como o Volcano Suns, o Kustomized e o Peer Group, ora regendo
as baquetas, ora tocando guitarra. Clint Conley produziu o
primeiro disco do Yo La Tengo, "Ride the Tiger",
de 1986, e depois deixou o ramo musical, indo trabalhar como
produtor de televisão em Boston.
Em 2001, o primeiro sinal de
que o Burma não estava completamente morto: em um show
onde o Peer Group fazia a abertura para o Wire, Prescott chamou
ao palco Conley e Miller, para aquilo que seria a primeira
reunião dos três 18 anos após a última
turnê do Mission of Burma. Um novo impulso para uma
volta foi dado pelo livro do jornalista Michael Azerrad, "Our
Band Could Be Your Life", que falava sobre a cena alternativa
musical dos anos 80 e dava um justíssimo grande destaque
ao grupo. Conley então voltou a compor e a tocar, primeiramente
com uma nova banda chamada Consonant.
Em 2002, Conley, Miller e Prescott
resolveram voltar a tocar ao vivo juntos, aproveitando que
o problema auditivo de Miller estava sob controle. Swope foi
convidado a ocupar seu posto novamente, mas preferiu não
participar. Bob Weston, do Shellac, e que também havia
tocado no Volcano Suns de Prescott, foi convocado para a vaga
de Swope, e logo a banda estaria fazendo dois shows lotados
no Irving Plaza, em Nova York, comprovando que a ocasião
era bastante propícia para a ressurreição.
E
o Burma voltou com tudo, como se o lapso de tempo em sua história
simplesmente não tivesse existido: excursionou em boa
parte de 2002 e 2003; voltou aos estúdios para a gravação
de um novo disco, "OnOffOn", lançado em 2004
arrebanhando elogios rasgados de forma praticamente unânime;
voltando à estrada logo depois; achando tempo para
lançar via iTunes o EP "Snapshot"; e baixando
na América do Sul para tocar pela primeira vez no Brasil,
fazendo um show antológico no Campari Rock Festival,
que aconteceu em abril de 2006 em São Paulo. Nesse
mesmo ano, a banda soltou um novo LP, o excepcional "The
Obliterati", recebido por muitos como seu melhor álbum,
desde que a banda nasceu, no longíquo ano de 1979.
Se é realmente a obra-prima do grupo, apenas o tempo
vai dizer, pois parece que estes senhores ainda estão
longe de escrever o capítulo final desta história.
É certo que trata-se de um disco espetacular, mais
pesado, intrincado e ambicioso do que tudo que a banda já
fez anteriormente. Longa vida ao Mission of Burma!
Fabrício Boppré
junho/2006 |