Batizado William Charlie Hamper
(também há em alguns lugares a citação
de Steven John Hamper), Billy Childish nasceu em 1959 em Chatham,
Kent, uma cidade naval caindo aos pedaços perto do
Rio Medway, ao Sudeste de Londres, onde mora até hoje.
Seu apelido foi dado por um amigo, "Button-nose Steve"
(algo como "Steve nariz-de-batata") na época
em que editava um fanzine punk. Tornou-se uma figura "cult"
nos EUA, Europa e Japão por ser considerado um dos
artistas que mais produziram (de fato, o que mais produziu)
obras na sua geração, que incluem (pelo registro
até o momento) cerca de 2000 pinturas, desenhos e gravuras,
30 coleções de poesia, 4 romances e uma série
de bandas, estimando-se no total perto de 100 LPs gravados.
Seu pai era um artista comercial
com pretensões de grandiosidade, filho de um mercador.
Emocionalmente instável e gastador, ele abandonou a
família quando Childish tinha apenas 6 anos, mas retornava
periodicamente à casa em que eles moravam, bêbado.
Essa
figura do pai acompanhou Childish pela vida inteira.
Outra figura marcante na história dele foi o
amigo da família que abusou sexualmente dele
quando ele tinha 9 anos, durante as férias em
Seasalter, fato que freqüentemente é lembrado
como a raiz de sentimentos de culpa, vergonha, confusão
sobre a própria sexualidade e uma das causas
de seu posterior alcoolismo (de fato, apenas há
alguns anos atrás o tema começou a ser
abordado através de sua poesia e música,
inclusive com um disco chamado "Paedophile",
cuja capa seria uma foto antiga do "amigo"
em questão). |

"Paedophile"
acabou como faixa dos Headcoats (álbum: Thee
Headcoats - The Sound of the Baskervilles) |
Abandonou o ensino secundário
aos 16 anos, por odiar aquilo, por ser freqüentemente
maltratado por colegas e chamado de incapaz pelos professores
(anos mais tarde, foi diagnosticado disléxico). Então,
tentou matricular-se na escola de artes local, mas foi recusado,
e acabou arranjando emprego como aprendiz de pedreiro nas
docas de Chatham. Ficou lá por menos de um ano, e durante
esse tempo trabalhou em alguns (uns 600) desenhos que chamou
de "the tea huts of hell" ("barracas de chá
do inferno"). Com eles, conseguiu ser aceito na Escola
de Artes de Medway, e depois na de Saint Martin, em Londres.
De lá, foi expulso por faltas e por discutir com os
professores. Durante todo esse período (e por mais
ou menos 12 anos a partir daí) viveu principalmente
de seguro-desemprego.
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Enquadrou-se
na cena do punk rock em 1977, imprimindo fanzines de
cópia única, alguns com poesia e letras
de músicas, e formou a primeira de uma série
de bandas, The Pop Rivets ("The Pop Rivits"),
como vocalista (já que não sabia tocar
nada), junto com outros fãs de blues e rock'n'roll
da década de 50. Em 1978, os fanzines passaram
a ser impressos como coleções de poesia,
e em 1979 Billy começou a trabalhar com Sexton
Ming numa banda chamada Major Dog and the Gissyoms e
na gráfica Phyroid. Em 1980, os Pop Rivets se
separaram. |
Desde então, Childish
tocou com várias bandas, incluindo Thee Milkshakes,
Thee Mighty Caesars e Thee Headcoats, mas nunca se distanciou
muito da linha que havia seguido com os Pop Rivets: apontado
como o padrinho do rock'n'roll Lo-Fi, a música
já foi descrita como soando "como
se Billy quisesse terminar logo para passar para a próxima"
e ainda como alta, retrô, básica, um revival
de punk e Rythm'n'Blues que consiste simplesmente em tocar
os mesmos 3 acordes umas 500 vezes seguidas. Fórmula
que parece ter funcionado. As bandas de Childish se tornaram
conhecidas, qualquer uma delas, por serem capazes de terminar
um disco inteiro em poucos dias, sendo que Thee Milkshakes
chegou a gravar quatro LP’s em um único dia porque
falaram para eles que tinham lançado discos demais
e isso era suicídio comercial.
Durante o início da
década de 80 Billy fundou sua própria editora,
Hangman Books &
Records, e se juntou a um grupo conhecido como os Medway
Poets, que liam poesia informalmente em faculdades e bares.
Era, então, descrito como uma pessoa imprevisível,
de trabalho altamente confessional, que não se importava
com a opinião dos outros exatamente porque sua inspiração
era a sua própria vida. Sua poesia e seus romances
(e tudo o mais que ele faz) ainda são autobiográficos,
mantendo constantes as características de impulsividade
e de serem publicados exatamente como ele os escreve (ele
é disléxico, lembra?).
Em paralelo,
sua pintura é elaborada demais para ser chamada
de leiga ou primitiva, mas é de estilo simples
e não parece ser destinada a ninguém além
dele mesmo, consistindo de retratos de si e de amigos
(principalmente das ex-namoradas Tracey e Kyra). Os
quadros não estão em galeria alguma, apesar
de já terem sido exibidos em alguns locais na
Europa, sendo negociados e vendidos
pelo próprio autor ou pessoas próximas
a ele. |

matriz... um auto-retrato |

resultado... a pintura,
datada de 1983 |
Foi alcoólatra e suicida
(queimava-se com cigarros e se cortava com giletes "só
para ver se ainda saía sangue") durante mais de
10 anos (apesar de beber desde os 12, parou perto dos 30)
e durante esse período desenvolveu uma obsessão
meio mórbida pelos assassinos Ian Brady and Myra Hindley.
Foi também nessa época que conheceu Tracy ("Tracey")
Emin, que passou a administrar a Hangman pouco depois, e ficou
por lá até 85. Tracy havia abandonado a escola
aos 13 anos, passando por um período de "grande
promiscuidade" (como descreveu), e quando conheceu Childish,
tinha 18 anos e estudava Moda em Medway. Vendia os livros
de poesia dele enquanto ele lia poesia em público,
e os dois gastavam o dinheiro em bebida. Depois, influenciada
por ele, passou a escrever e pintar também. Essa influência
tornou-se tão forte que era difícil separar
nesse período quem havia feito o quê.
Tracy
era uma personalidade carente de atenção
e o casal freqüentemente protagonizava "shows",
aparecendo publica-mente com "marcas de afeto"
(como orelhas mordidas sangrando), brigas e alfine-tadas,
e até hoje não é possível
entender o relacionamento dos dois. |

Billy Childish e Tracey
Emin, início dos anos 80. |
Em 1986 eles se separaram e
Tracy Emin se tornou uma artista premiada na Inglaterra, sendo
que sua inspiração baseada na própria
vida (sua promiscuidade, seu aborto, etc.), embora ela negue,
é sem dúvida influência do ex.
Aparentemente, Childish ainda se ressente por ela, reclamando
de não ser reconhecido por seu crédito em torná-la
uma artista, dizendo em seus trabalhos e entrevistas o quanto
ainda se importa com ela e como incomoda vê-la envolvida
com uma arte que "é lixo" e suas aparições
na mídia.
Em 1999, Childish fundou com
Charles Thomson - um dos poetas de Medway - o movimento
Stuckista, como um grupo de arte defendendo a pintura.
O Stuckismo, resumindo as posições dos documentos
(escritos por Childish) que o grupo publicou, opõe-se
à arte contemporânea/ pós-modernista (conceitual,
minimalista, acadêmica, de performance e trabalhos com
animais mortos como os de Damien Hirst). Apesar de ser mais
para ridicularizar os ditos trabalhos de vanguarda dos artistas
britânicos, ele aborda em seus manifestos alguns pontos
sérios, como a "busca pela autenticidade",
negar-se a ser "ofuscado pelo brilho dos prêmios",
a "exploração da própria inocência
e das próprias neuroses" pelo artista, a necessidade
da arte como forma de comunicação e justamente
por isso a oposição à forma como ela
atualmente é escravizada pelo mercado. No entanto,
novamente, o nome dos Stuckistas é tirado de um poema
de Tracy Emin (em que ela acusava Childish de estar empacado
- 'stuck' - em tudo o que faz: na sua música tosca,
na sua pintura de poucos temas, na sua casa em Chatham), e
volta e meia percebe-se alguma alfinetada endereçada
a ela nos seus documentos Stuckistas.
Kyra |
Ainda
assim, são assuntos importantes os que foram
abordados, especialmente em relação à
mídia, se formos enxergar além dessa abordagem
dos escritos como "resultado de ciuminhos".
A Hangman, desde a sua
fundação, passou a imprimir panfletos
e livros de uma variedade de autores, mantendo-se de
torma independente. Kyra DeCorninck, outra namorada
e mãe de seu filho, assumiu a editora depois
da separação de Tracy e Childish, ficando
nesse posto até 2000, quando Julie Hamper assumiu.
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O trabalho de Childish passou
a ser mencionado por artistas mais conhecidos; Kurt Cobain
recomendava Thee Mighty Caesars, Kylie Minongue apareceu com
um de seus livros de poesia (e colocou seu nome em um de seus
discos, "Poems to Break the Harts - SIC - of Impossible
Princesses") e Jack White apareceu na TV com o nome de
Billy no antebraço, porque a BBC não tinha deixado
que ele colocasse Childish pintando no palco enquanto eles
faziam o show. Com essas citações todas, a banda
mais recente de Childish, Thee Buff Mudways (ou "The
Friends Of The Buff Medway Fanciers Association") assinou
com a Transcopic Records (de Graham Coxon).
O que se pode tirar dessa história
e para entender o trabalho de Childish é mais ou menos
o que diz Eugene
Doyen, seu ex-colega: "durante toda sua vida as pessoas
tentaram convencê-lo de que ele era um único
tipo de pessoa: um idiota. Sempre disseram a ele que ele era
ruim, que nunca iria acrescentar nada a nada. Mas ao invés
de acatar aquilo que queriam dele, era sempre um caso de 'vá
se foder, eu vou fazer o que eu quero fazer'."
Ana D.M.
Julho / 2003
* As fotos em preto-e-branco
desta página são da galeria de Eugene
Doyen. A maior parte das informações usadas
neste texto são uma compilação de informações
de diversas entrevistas e dos sites sobre o artista, mas boa
parte delas e mais podem ser encontradas na entrevista concedida
a Mick Brown para o Telegraph
em 29/01/2000.
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