Se
um dia os anos 90 forem revisitados com tanto afinco quanto
os 80, é possível que uma banda como o Cracker
possa receber uma segunda chance de ser ouvida por mais pessoas.
Ou talvez não, já que esses revivals costumam
pender mais ao lado mais caricato (leia-se trash) de determinada
época. De qualquer forma, o Cracker, mesmo não
figurando entre os nomes mais influentes e conhecidos, marcou
presença a partir a década de 90, construindo
uma trajetória coerente com sua proposta e seu surgimento,
cativando um reduzido, porém ativo grupo de fãs
e simpatizantes pelo caminho.
Assim com o contemporâneo
Sugar foi formado a partir da dissolução do
Hüsker Dü, o Cracker também é descendente
direto de uma banda marcante dos anos 80, o Camper Van Bethoven.
David Lowery era o vocalista e guitarrista do Camper Van Bethoven,
uma banda vanguardista imprevisível que misturava múltiplas
sonoridades diversas, desde punk a ritmos folk eslavos. O
Camper Van Bethoven teve até um hit na manga, com a
clássica "Take the Skinheads Bowling", que
tocou bastante nas college rádios americanas, e tinha
contrato em vigor com a Virgin quando se dissolveu em 1990.
Em poucos meses, Lowery formou o Cracker com o parceiro John
Hickman (guitarras, vocais), herdando o contrato da Virgin
e grandes expectativas.
Além de Lowery e Hickman,
o Cracker contava ainda com o baixista Davey Faragher (baixo),
mas não havia um baterista fixo. Ainda assim, em pouco
tempo a banda já tinha repertório definido e
entrava em estúdio para gravar seu primeiro álbum
com o produtor Don Smith. O resultado, Cracker, álbum
auto-intitulado lançado em março de 92, revelou
uma sonoridade bastante diversa ao Camper Van Bethoven. Muito
mais focado (ou limitado?) que a banda anterior de Lowery,
o Cracker tinha um direcionamento mais voltado a um rock garageiro,
influenciado pelo que é chamado de rock clássico,
de raíz, muitas vezes esbarrando no country, se aproximando
de bandas como Jayhawks e Wilco. Mesmo que a Virgin não
tenha apostado forte no Cracker em termos de divulgação,
o ano de 1992 era um momento muito favorável para bandas
novas, ainda mais no caso do Cracker, uma banda com o pedigree
de um passado relevante atrelado ao Camper Van Bethoven. Com
isso, o single de "Teen Angst" repercutiu bem nas
rádios e MTV, garantindo uma boa exposição.
"Teen Angst" explorava o lado mais garageiro do
grupo, com guitarras distorcidas que caíram bem entre
a legião de apreciadores do som de Seattle que despontava
na época. Outro destaque de "Teen Angst"
evidenciava mais uma característica do Cracker: a acidez
e o sarcasmo das letras.
"What
the world needs now
Is another folk singer
Like I need a hole in my head"
Teen Angst
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Repare na indumentária grunge
dos rapazes
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Além de "Teen Angst",
o álbum trazia ainda "Happy Birthday To Me",
também lançada como single, e "This Is
Cracker Soul", até hoje entre as preferidas dos
fãs. Por sinal, os fãs precisaram ser convertidos
aos poucos, pois o Cracker dividiu opiniões à
primeira impressão. Alguns fãs do Camper Van
Bethoven e parte da crítica acusaram Lowery de optar
por um caminho mais fácil com o Cracker, se aproveitando
da onda grunge e escrevendo letras irônicas nihilistas
de fácil apelo aos adolecentes. Sell-outs, resumindo.
A resposta do Cracker veio
a base de muita turnê e trabalho sério. Já
no ano seguinte chegava as lojas Kerosene Hat, também
produzido por Don Smith. O novo disco reafirmava a sonoridade
do primeiro álbum, contando com um single ainda mais
forte, "Low". Outras músicas como “Get
Off This”, “Sick of Goodbyes”, e especialmente
“Euro-Trash Girl” (mais uma favorita entre os
fãs), mostrava que David Lowery e John Hickman estavam
cada vez mais azeitados como compositores. No entanto, foi
"Low" que repercutiu. O videoclipe que mostrava
cenas de boxe rodou direto na MTV levando o álbum Kerosene
Hat ao número 59 na parada da Billboard americana.
A esta altura, o Cracker ainda não tinha baterista
fixo (pelo menos quatro bateristas passaram pelo Cracker em
seus primeiros anos), e acabava de perder o baixista quando
Davey Faragher deixa a banda. A partir de então se
tornou evidente que o Cracker era a dupla David Lowery e John
Hickman, onde quem mais estivesse com eles teria uma importância
menor.
"I'll be with you girl
Like being low
Hey hey hey
Llike being stone"
Low
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Johnny Hickman e David Lowery:
os donos da bola
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Os anos seguintes foram dedicados
extensivamente às turnês e um novo álbum
somente surgiria em 1996. The Golden Age, produzido
pelo próprio Lowery em parceria com Dennis Herring,
é um disco bastante diverso, alternando músicas
mais pesadas (“I Hate My Generation”, “I’m
a Little Rocketship”) com momentos mais intimistas,
como na semi-acústica “I Can’t Forget You”
e “Dixie Babylon”. Bob Rupe tornou-se o novo baixista
da banda, enquanto na bateria continuava o revezamento de
músicos convidados, foram três para a gravação
do álbum. Aliás, a lista de músicos convidados
em The Golden Age é enorme, evidenciando o cuidado
especial da banda com os arranjos, contando até com
arranjo de cordas em algumas faixas. No entanto, por volta
de 1996 o rock alternativo vinha perdendo destaque nas paradas,
mesmo as bandas grandes viram suas vendas minguarem, e com
o Cracker não foi diferente. O disco repercutiu menos
que Kerosene Hat, e a partir de então a banda ficou
mais restrita ao seu próprio círculo de fãs.
David Lowery: sem mais hits para o Cracker
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“I
hate my generation
I offer no apologies
Oh, I hate my generation
Yeah”
I Hate My Generation
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Após a turnê de
divulgação do álbum The Golden Age,
David Lowery esteve envolvido em diversas atividades extra-banda.
Em seu próprio estúdio, o Sound of Music em
Richmond, Virginia, ele trabalhou como produtor com bandas
como Sparklehorse, Counting Crows e Magnet, além Joan
Osborne, retribuindo um favor, já que a cantora havia
emprestado seus vocais para o Cracker fazendo backing em faixas
de The Golden Age. Lowery também atuou no cinema (!),
atuando no filme independente River Red, de 1998 (mais tarde
ele repetiria a dose em This Space Between Us, lançado
em 2000).
Em 1998, o Cracker volta a
trabalhar com o produtor Don Smith no álbum Gentleman’s
Blues. O disco continuava o caminho trilhado pelo álbum
anterior, com forte presença de músicas mais
lentas e intimistas, sem abandonar o lado rock and roll. A
novidade é que primeira vez a banda contaria com um
baterista fixo na formação, com Frank Funaro
tomando conta das baquetas com sua batida à la Stones,
grande influência do grupo. O disco foi solenemente
ignorado pelas paradas (número 192 na Billboard), mas
o sucesso comercial já não era perseguido pelo
Cracker já há algum tempo.
Em 2000 surge a retrospectiva
Garage d’Or, coletânea reunindo as faixas
mais conhecidas da banda, além das tradicionais três
faixas inéditas. Para a mídia, o lançamento
de coletânea é um indício do fim de uma
banda, mas não no caso do Cracker. Garage d’Or
na verdade foi o fim de um ciclo, com a banda sendo dispensada
da Virgin logo em seguida. Era a volta à independência,
o início de um novo caminho trilhado, ironicamente,
ao lado do Camper Van Bethoven.
"Both
Camper and Cracker always had grand commercial ambitions.
Camper wanted to be the Beatles, but we didn't really
succeed. Cracker wanted to be the Rolling Stones --
we wanted to be a great rootsy rock band -- but we
didn't really succeed either. We ended up being the
Kinks."
David Lowery
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O combo Cracker
/ Camper Van Bethoven
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Ainda em 2000, quando o Cracker
estava se preparando para a turnê de divulgação
para Garage d’Or, a banda mais uma vez ficou
sem um baixista, com a saída de Bob Rupe. Com isso,
Lowery chamou o ex-parceiro de Camper Van Bethoven Victor
Krummenacher para tocar na turnê e a partir daí
surgiu a idéia de reunir o próprio Camper Van
Bethoven. Com os demais ex-integrantes do CVB apoiando a idéia
surgiu uma grande turnê com as duas bandas. Era como
se o Breeders fizesse os shows de abertura da turnê
de reunião dos Pixies, mas no caso foi melhor ainda,
integrantes do Cracker e do CBV se misturavam no palco, alternando
releituras de músicas do Cracker, os clássicos
do Camper e músicas de projetos paralelos de vários
dos integrantes. Foi uma festa.
O Camper Van Bethoven acabou
voltando a ativa de verdade, voltando a lançar álbuns
desde então, mas isso não significou o final
do Cracker. Em 2002 foi lançado Forever pelo
selo Back Porch, que vinha acompanhado de um disco ao vivo
na prensagem inicial. No ano seguinte foi a vez de Countrysides,
curioso projeto que reúne covers de clássicos
da música country, gravados como uma banda country
o faria. O disco surgiu de um projeto paralelo de Lowery e
Hickman chamado Ironic Mullet, onde eles se apresentavam em
bares country tocando covers. Foi tudo uma grande brincadeira,
que na verdade revelava o apreço pela música
country, elemento presente no Cracker desde a formação
da banda. É irônico perceber na trajetória
do Cracker um movimento contrário ao do Wilco, por
exemplo. No início de carreira, o Wilco tinha os pés
fincados no country-rock e aos poucos foi agregando outros
elementos que culminaram nos álbuns Yankee Hotel
Foxtrot e A Ghost Is Born, discos aclamados
de rock alternativo. Já o Cracker surgiu em meio ao
turbilhão do rock alternativo e aos poucos foi tomando
distância dessa cena, culminando com o lançamento
de um álbum totalmente focado no country.
Nos anos seguintes, tanto Cracker
quanto Camper Van Bethoven seguiram na estrada, ao mesmo tempo
em que Johnny Hickman estabeleu uma carreira-solo, lançando
o álbum Palmhenge em 2005 enquanto o Cracker
planeja um novo álbum para 2006.
Alexandre Luzardo
nov/2005
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