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Review: Loveless

avaliação:
Volta e meia, discos são citados, inesperadamente, como obras-primas. Seja pela necessidade de se reciclar postos de grandes discos ou mesmo pela intenção de compensar injustiças cometidas no passado, alguns álbuns, anos após seus lançamentos, recebem a atenção que talvez tivessem merecido receber quando estavam disputando a valer.

Depois de "Pet Sounds" e "Nevermind" (esse, já considerado seminal praticamente após seu lançamento), "Loveless", o derradeiro disco dos irlandeses do My Bloody Valentine, ressurgiu das sombras no final da década de noventa como um dos melhores discos daquele período.

Não que a banda, quando do lançamento, fosse apenas um quarteto querendo colocar as fuças para fora da garagem: o MBV já tinha conquistado uma certa respeitabilidade junto a imprensa inglesa e, sim, era figurinha do staff da gravadora Creation, um selo que já tinha em seu currículo nomes como Jesus And Mary Chain e Primal Scream e de certa forma respondia por alguma coisa de vanguarda da época. "Isn't Anything" (1988), o disco anterior, tinha mostrado evoluções significativas na personalidade e no feitio sonoro da banda, que saiu de um som estritamente simples e ruidoso para uma sugestiva mistura antagônica de barulho com melancolia, receita que se transformaria no seu slogan. De alguma forma, "Isn't Anything" já dava um grande passo nesse sentido, mas ainda deixava lacunas a serem preenchidas por Kevin Shields, mentor da banda. Crítica e público então não hesitaram em depositar expectativas no lançamento do disco seguinte, uma prática que ali iniciaria e marcaria até hoje o sentimento de quem aprecia a música do quarteto. Paciência sempre foi uma virtude para a banda. Junto de Bilinda Butcher, Debbie Googe e Colm O'Ciosoig, Shields entregou-se ao trabalho de construção do disco num ritmo aplicado, cauteloso e (mais um adjetivo comum quando se fala em MBV) perfeccionista. Fossem problemas com as parafusetas das guitarras, com a mesa de som ou com a condição homeless do baterista, Shields ia contornando as circunstâncias, empurrando a produção de seu disco para além do que a gravadora esperava. O que para a Creation devia ser apenas um lançamento para gerar retorno, para o MBV tornou-se um compromisso de transferir para fita as intenções sonoras de Shields. Tal processo sangrou os cofres da Creation e, reza a já batida lenda, por pouco não a levou à falência.

O resultado, "Loveless", chegou às lojas em novembro de 1991 e, talvez não sugerindo o caráter messiânico que receberia quase uma década depois, teve lá seu efeito no público da época. O disco automaticamente ultrapassava seu anterior. Na época, ninguém menos que Brian Eno considerou "Soon", a música que fecha o disco, "o estabelecimento de um novo padrão para o pop". Sobretudo, "Loveless" pega o legado do disco anterior e cria sobre ele um universo todo particular, que é a grande razão de sua veneração. Impossível não apontar aqui o jargão atribuído à banda, que o disco fatalmente consagrou e é o seu verdadeiro triunfo: nele repousa o aclamado amálgama entre ruído e melodia. Embora constantemente citado como a "bíblia do shoegazing", "Loveless" passa longe da podolatria, mostrando-se um exercício meticuloso de seu compositor. Sua graça toda está na tentativa de descobrir a linha tênue entre o barulho e a delicadeza, escondida meticulosamente na extensão do álbum. Seus dois atributos caminham juntos, quase siameses, e o que por um lado é uma grande maçaroca de ruídos, é também uma verdadeira aula de melodia e melancolia. Shields faz uso de verdadeiras fortalezas de guitarras distorcidas, geralmente loopeadas, assim como o faz com os samplers de bateria e o baixo, que trabalham lá embaixo da mixagem. Se os dois últimos instrumentos nunca foram tão coadjuvantes no som de uma banda, os vocais têm uma participação igualmente peculiar. Shields usa-os como um instrumento adicional, suaves, encarregados de responder pela melodia de "Loveless" e entrar em conflito com a tormenta ocasionada pelas guitarras. Para tanto, abusa da fragilidade sugerida pela voz feminina de Bilinda, sempre tomando cuidado para que a pronúncia das letras fique soterrada, inteligível, apostando na sugestão de declarações de amor ou manifestações tímidas de qualquer condição emocional. Tudo isso, em conjunto, cria uma simbiose difícil de ser imitada e, principalmente, colocada em texto. Tentar identificar o que é guitarra, o que é vocal e o que é algum truque é impossível, e essa combinação é infalível na tarefa de chamar a atenção do ouvinte. Os ingredientes combinados sobrepõem-se sobre o concreto, cutucando a percepção sensorial, já que estamos falando de música que não é instrumental mas também não comunica através de letras. As coisas estão mesmo aglutinadas na correria inconseqüente que as guitarras fazem em "To Here Knows When", na melodia explícita e abundante de "I Only Said" e no pop mybloodyvalentinesco de "When You Sleep" e "What You Want". "Sometimes", faixa usada por Sofia Coppola em seu "Lost In Translation", condensa a idéia da banda direitinho: Shields canta suave uma melodia redentora, mas as guitarras saturadas encantadoramente entram em sintonia com ele, dando ao arranjo o direito de dispensar a bateria.

A genuinidade de "Loveless" não só continua desafiando músicos e ouvintes até hoje, como apresentou-se um problema intransponível para a banda. Em acordo com a Creation, que queria ver Kevin Shields pelas costas ("Loveless", embora reconhecido, não vendeu o suficiente para pagar seu financiamento), o MBV assinou com a Island, evidentemente interessada em conciliar a banda com o grande público. A nova gravadora recheou os bolsos de Shields com libras, investidos na construção de um estúdio que daria suporte à criação do sucessor de "Loveless". Em 1992, quando a estrutura foi concluída e supostamente os trabalhos começariam, a Island e a banda começaram a se estranhar. Kevin colocou as culpas na mesa de som adquirida, que dava pau a cada cinco minutos, a Island questionava a necessidade da construção de um estúdio em primeiro lugar. Pressões a parte, a banda derretia aos poucos, com Shields batendo cabeça em relação aos seus requisitos e inseguro quanto à capacidade de produzir música no mesmo nível que fez em seu grande disco. Nada do que produziam, em sua ótica, estava a altura de seu último rebento. Os anos passaram, o público foi apresentado a dezenas de outros grandes discos e a banda ruiu em 1995, embora Kevin e Bilinda ainda gravassem até 1997. Apesar da ausência, o My Bloody Valentine nunca manifestou oficialmente seu fim.

Envolvido com mixagens de músicas, tocando por diversão com o Primal Scream ou mesmo em tímidas investidas solo (gravou quatro músicas para a trilha de "Lost In Translation"), Shields deixa escapar intenções de voltar a produzir música. Já houve manifestações da possibilidade dele lançar raridades do MBV e até lançar um disco solo. Entretanto, o hiato atual não é muito diferente do de 1992, quando o público deveria estar colocando um novo disco dos irlandeses em suas vitrolas. Ainda assim, "Loveless" reina supremo, talvez registrando um momento único de um compositor diferenciado, à disposição para ser repetido exaustivamente até o fim dos tempos.

Vicente Moschetti
out/2005