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Review: Hail to the Thief
avaliação:
O Radiohead me dá a impressão de ocupar atualmente um estágio de maturidade musical diferenciado, outro nível de criação, se comparado com o resto do mundo. Enquanto constrói sua discografia, a banda vem inserindo-se em uma dimensão própria, excluindo-se de correntes terrenas e criando um estilo que prima pelos fator ecletismo e, por extensão, na surpresa, no choque inicial imposto aos mais desprevinidos.

Mas a cada lançamento, após abertas as cortinas, reconhece-se que o que se vê (ouve-se) é um produto by Radiohead, ainda que saibamos de antemão que não devemos esperar nada muito definido. É como se o quintal da banda fosse o mundo e sua matéria prima, qualquer coisa, mas o diferencial é que, com algo tão grande e irregular em mãos, o grupo consegue extrair inspiração, condensar elementos e criar obras-primas seguidamente, cuja virtude maior termina por ser a originalidade não desprovida de beleza. A banda mantém sua posição de destaque sempre e a essa altura já tem moral e liberdade para fazer o que quiser. Sem contar, claro, os dois fatores mais importantes: coragem e talento.

“Hail to the Thief” esteve desde o início embalado nesse espírito, nessa aura irrotulável que a banda sedimentou em torno de si com seus últimos lançamentos. “Ok Computer” já havia chamado (muita) atenção, mas poucos perceberam que um pequeno mundo estava sendo criado naquele momento. Já com a dobradinha “Kid A” e “Amnesiac”, o big-bang foi visível para todos, tal a radicalidade da diferença de sonoridade e direcionamento musical que a banda apresentou. Portanto, a expectativa para “Hail to the Thief” era grande e as perguntas sobre como viria a ser o novo disco eram muitas. A banda chegou a plantar em diversas ocasiões a idéia de que o disco seria um “Ok Computer 2”, o que teoricamente significaria que as guitarras tomariam a dianteira novamente e a eletrônica seria mais sutil. Bem, digamos que isso seja uma meia verdade.

Em geral, “Hail to the Thief” pode ser visto como um apanhado do que o Radiohead fez anteriormente, ao mesmo tempo que trata-se de uma evolução natural no trabalho do grupo inglês. Sim, guitarras e violões são ouvidos mais frequentementes se compararmos o novo disco com os dois anteriores, mas estes elementos nunca haviam desaparecido por completo dos estúdios da banda (digamos que apenas viveram uma fase mais tímida). Sua volta em nenhum momento soa forçada, como se estivessem ali somente para atender a alguma pressão externa, mercadológica: é claramente o mesmo Radiohead de “Kid A”, assim como o mesmo de “Ok Computer”. O ponto comum, que dá identidade e coesão à obra deles até aqui (descontando o primeiro álbum, que por mais que seja legal, realmente hoje soa um tanto quanto deslocado na discografia da banda), é que trata-se novamente de um disco urbano, recheado de caos e sentimento, eletronicamente frio em algumas passagens (não tanto quanto “Kid A”) e melodiosamente aconchegante em outras (não tanto quando “Ok Computer”), com alguns momentos mais difíceis, outros de imediata assimilação, e, claro, com algumas surpresas reservadas. Enfim, a banda uniu algumas pontas somente, não rendeu-se e nem renegou quaisquer de seus príncipios, criando mais um disco soberbo e atemporal.

As cortinas se abrem finalmente com 2+2=5, uma faixa que começa como se estivesse ajustando-se um pouco atrasada, entrando em sintonia em questão de segundos com o dedilhar de uma guitarra, e logo depois sendo inundada por uma chuva delas, em diferentes intensidades e eloquências. Liricamente, já é identificável o foco de protesto político que permeia parte do álbum (a começar pelo título, uma referência sutil ao difamado presidente americano George W. Bush, que costuma ser saudado com “Hail to the chief” por parte de seu eleitorado), algo pouco comum na carreira do Radiohead até então, ou pelo menos, algo pouco comum nesse grau de explicidade. “Are you such a dreamer/to put the world to rights/i'll stay home forever/where two and two always makes a five” canta Thom Yorke, cheio de analogias.

Sit Down, Stand Up vem a seguir. Sua introdução é muito boa, mas a parte eletrônica pesada que vem depois eu confesso que não entendi até agora (e nem irei mais). Na verdade essa música soa bem decepcionante para mim, pois o seu início e o tenso crescendo são promissores, deixando o ouvinte em uma agoniante expectativa por um clímax grandioso. Mas o que surge é uma maçaroca repetitiva e sem muito sentido. Tudo bem, nada que comprometa o resultado final da obra.

A essa altura já está se formando na cabeça do ouvinte um panorama de “Hail to the Thief”, uma percepção da relação deste novo disco com a obra dos caras: a guitarra já apareceu mais do que em "Kid A" e "Amnesiac" juntos, a banda continua criando climas tétricos como poucas e a eletrônica permanece tendo papel de destaque, ainda que agora ela não seja mais a protagonista preponderantemente principal. Mas o Radiohead tem algumas surpresas guardadas na manga, como se não quisesse revelar o disco tão precocemente, ainda que estas não alterem muito a sensação brotada pelas duas primeiras faixas, que realmente acaba entregando e respondendo à todas aquelas perguntas pré-lançamento do disco.

De um certo modo Sail to the Moon é uma dessas surpresas. Nada muito novo ou inesperado, mas o fato é que a canção tem uma beleza consternante, levemente trágica, com frases de piano que nos remetem a outra canção de beleza eterna, The Great Gig in the Sky, do Pink Floyd. A guitarra segue junta de maneira delicada e perfeita, capaz de sensibilizar até uma pedra, e Thom continua fazendo o que quer com suas cordas vocais (para mim ele é o melhor, de longe). Uma canção simples, de melodia envolvente e belíssima harmonia, que funciona no contexto do álbum mais ou menos como How To Disappear Completely em “Kid A”. Como naquela fábula em que o sol vence a disputa com o vento para ver quem faria o viajante tirar sua capa: apesar das qualidades das duas primeiras faixas (que fariam o papel do poderoso vento), é Sail to the Moon (que seria o sol, apesar de seu título criar aqui um paradoxo) que arrebata o ouvinte e faz ele começar a gostar muito do disco (o viajante tirando sua capa), e o faz de maneira serena, suave, sem grandes estardalhaços. O bom e velho sol, silencioso e agradável. A boa e velha melodia, sutil e sem truques.

Backdrifts é a próxima, uma música com a cara do Radiohead. Essencialmente eletrônica, com um efeito interessante e hipnótico no fundo fazendo parede para barulhinhos diversos, algumas notas sorrateiras de piano no final, e o vocal de Thom Yorke. O resultado é uma leveza bem sacada, despretenciosa, uma musiquinha difícil de esquecer.

Go To Sleep começa com arranjo de violões, melodia imponente e Thom Yorke abusando novamente de seu potencial vocal. A guitarra logo se funde à canção e ocorrem algumas mudanças de andamento que nos fazem lembrar de Paranoid Android. A música é muito boa, talvez somente sua localização não ajude: soa meio descontinuada com seus violões encorpados e cheios de calor humano em contra-ponto com o fim robótico da faixa anterior, mas este é um sentimento fugaz, logo suprimido pela qualidade da música.

Em Where I End And You Begin, Colin Greenwood rouba a cena: seu baixo impera na música, percorrendo-a insinuantemente com muita propridade. A ambientação fica por conta novamente de teclados e computadores sutis a serviço do bem estar da humanidade, acompanhados de bateria abafada e marcada. Guitarras novamente dão as caras da metade para frente, sacramentando o belíssimo conjunto. Mais para o final da música, os elementos apresentados alternam-se no volume, pedindo a atenção do ouvinte e pavimentando o fim apoteótico da canção que tem na repetição da frase “I will eat you alive/there will be no more lies” a cereja do bolo. Som de altíssimo nível, Radiohead puro e esbanjando criatividade.

De repente um piano mórbido, quase parando, dá início à próxima faixa, We Suck Young Blood. A banda surpreende novamente: Thom brincando com sua voz, fundo simplório-lamuriante nos remetendo aos filmes de Ed Wood e palmas completamente fora de compasso com qualquer coisa são os elementos que compõe essa esquisitice sensacional. Uma música mais vampiresca do que a discografia completa de muita banda de black-metal-escandinavo-cara-pintada-com-Hipoglós, ainda que o vampiro de Thom Yorke pareça estar morrendo de ressaca e não consiga mais chupar o sangue nem de uma velhinha vesga. Ou ainda, trilha sonora perfeita para uma pessoa extremamente exausta e insone, rolando na cama de madrugada, em um quarto entrecortadamente iluminado por algumas luzes da cidade que atravessam as cortinas semi-abertas da janela, sem a menor expectativa de qualquer coisa interessante para fazer nos próximos 300 anos, além de trabalhar para conseguir sobreviver e conseguir saciar o alcoolismo. Entendeu? Bem, ouça a música e formule suas próprias impressões malucas, essas são as minhas... mas agora que eu comecei, deixa eu terminar: o ritmo da música torna-se urgente de repente, e eu imagino nosso amigo prisioneiro de sua própria irrelevância se levantando da cama em um pulo (a câmera dá um close no rosto suado e comum do cara, com uma centelha quase impeceptível de atitude em uma sombrancelha), pensando “chega, tenho que fazer alguma coisa decente da minha vida”. Mas após dois passos ele tropeça em uma garrafa vazia jogada no chão faz dias e cai, e, com o tombo e o gosto salgado de sangue na boca resultante de uma mordida no lábio na hora do impacto, percebe o quanto é inútil lutar contra sua mediocridade, pois não há nada a se fazer. Sem durar muito, a delirante empolgação cessa, a angústia sufocada volta a reinar novamente e a música acaba do jeito que começou. Prostrante. Aterradora. Ou é um filme B de vampiros muito engraçados, ou um espelho de nossas próprias vidas e seus diversos graus de puerilidade (espero que seja a primeira opção).

Após esta louca divagação (culpem o Radiohead e sua música!), The Gloaming aparece e leva o ouvinte a outro mundo. É o momento mais “Kid A”/“Amnesiac” do disco. A cortina eletrônica é bem construída e cheia de sutilezas, com Thom Yorke inserindo neste contexto seu vocal como um canto gregoriano, criando uma anti-simetria bastante pitoresca. Mas a música não chega a empolgar muito, apenas segurando com certa burocracia o nível do disco.

Já There There é espetacular, uma música que enche nossos ouvidos desde sua matadora introdução até seu último segundo. Possui sonoridade pré-“Kid A” recheada de guitarras solando livremente, microfonias e percussões. Melodia inspirada, ausência de refrão e cozinha espetacular são outros ingredientes. A impressão que fica é que a liberdade para a não-convencionalidade que a banda adquiriu em seus últimos trabalhos, por outro lado aguçou também sua sensibilidade pop, quando para esse porto-seguro eles quisessem retornar posteriormente. There There é a prova cabal disso, uma canção que tornou-se clássica desde suas primeiras aparições em shows pela Europa antes ainda do lançamento de "Hail to the Thief". O destaque inegável fica por conta das guitarras, que chegam a lembrar o timbre e o feeling das jams ao vivo de Neil Young.

I Will dá uma esfriada no ânimo com seu andamento como se fora uma oração, carregada na melancolia. Um faixa curta, que talvez por isso acaba não chamando muita atenção, ainda que tenha suas virtudes.

A Punch Up at a Wedding vem a seguir, e aqui fica cristalina a versatilidade do Radiohead. Uma canção universal, muito bem sacada em suas harmonias, na melodia meio funkeada, no baixo cheio de estilo, no piano, no andamento cadenciado, em todas estas partes que juntas fazem do conjunto um dos melhores momentos do disco.

Myxomatosis potencializa em nossas ouvidos o efeito da faixa anterior, mostrando novamente um Radiohead criativo e completamente à vontade para compor e tocar. Uma guitarra cheia de efeitos graves é a linha condutora da música e o destaque fica por conta da letra bastante curiosa.

Você já começa a ficar triste ao perceber, no breve intervalo vazio entre as faixas, que o disco tá no fim, mas logo se esquece disso quando começa a rolar Scatterbrain. Esta mostra que o Radiohead sabe ainda fazer muito com pouco, lembrando as belezas melódicas e dóceis de músicas mais antigas como Street Spirit e The Tourist. Bateria baixa marcando os acordes e Thom Yorke cantando como nunca. "Feladaputa esse cara", você já deve ter pensando diversas vezes até o momento...

Chega a última faixa, A Wolf at the Door, outro momento fantástico da banda em estúdio. Prende a atenção do primeiro ao último segundo, deixando o ouvinte pasmado com o refrão absurdamente bonito, os versos meio que declamados, o instrumental logo atrás dando o suporte ideal para Thom Yorke em mais uma atuação sublime. E o disco chega ao fim.

"Hail to the Thief" pede uma audição atenciosa, é do tipo de obra que não merece menos do que isso. Não é para ouvir fazendo outra coisa. E que esta audição também deve ser livre de preconceitos, isto nem precisa dizer, já que isso a banda requer já faz algum tempo. O negócio é botar o disco para rolar e se encantar. Impressione-se com o que a música ainda pode oferecer ao seu espírito, por mais que você seja experiente e conheça tudo do assunto. Afinal, em se tratando de Radiohead, estamos em outro nível.

Obs. 1: Considere as 4 estrelinhas e meia ali como nota 4,9. só não leva 5 por causa de Sit Down, Stand Up. Pô, eles não podiam ter feito aquilo com essa música...
Obs. 2: Vale a pena comprar o disco original, o encarte é muito legal, para ficar olhando e viajando junto com o disco.

Fabricio Boppré
set/2003