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Depois
do esquisito "NYC Ghosts and Flowers", de
2000, o Sonic Youth voltou a lançar um novo
trabalho em 2002. Apresentado ao mundo sob forte influência
do choque e da desorientação americana
após os atentados terroristas de setembro de
2001, "Murray Street" é um disco
mais acessível, bastante inspirado e bem-sucedido
na canalização das virtudes da banda.
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Kim Gordon, Thurston Moore, Lee Ranaldo
e Steve Shelley, agora oficialmente reforçados por
Jim O'Rourke, demonstram através de "Murray
Street" que, mesmo após 20 anos de estrada,
continuam em um saudável processo de desenvolvimento
e elaboração crescentes, agregado ao mesmo
espírito barulhento enraizado desde o primeiro disco.Dessa
vez, a criatividade aparentemente inesgotável do
grupo aponta em direção a melodias mais suaves
e experimentalismo mais coeso e detalhado que estendem as
canções para longas durações,
aditividas pelo entrosamento fora do comum entre seus membros
e pela liberdade que eles têm para criar. Liberdade
essa que foi sendo conquistada pelo Sonic Youth ao longo
de uma discografia irretocável e integridade artística
idem. "Murray Street" soa refrescante e selvagem,
a continuação natural dessa saga. Talvez não
entre numa listinha dos trabalhos mais contundentes do grupo
nova iorquino, mas, se eu fosse bolar uma para os seus melhores
álbuns, não o deixaria de fora.
Na música de "Murray
Street", a tragédia nova iorquina é latente
mais no som do que nas letras. Através de texturas
quebradiças, vocais erráticos e sonoridades
que fluem exalando um sentimento etéreo de fatalidade,
a banda expõe ao mundo as cicatrizes do atentado
de uma maneira menos lúgubre e mais sutil do que
é de se esperar de uma banda local. Para se entender
a proximidade do Sonic Youth com este acontecimento histórico:
o nome do álbum foi tirado da rua onde fica o Echo
Canyon, o estúdio da banda, a dois quarteirões
de onde se localizava o World Trade Center, derrubado pelos
Boeings certeiros enviados por Osama Bin Laden. Jim O´Rourke,
que estava no estúdio na manhã do ataque,
disse que viu uma parte de um dos aviões aterrissar
na rua em frente à janela principal do estúdio.
A área foi interditada e a banda teve que suspender
as gravações até poder voltar ao estúdio.
Logicamente o disco se transformou em algo diferente do
que seria caso as Torres Gêmeas ainda estivessem de
pé. O quão diferente, não podemos saber...
Empty Page é a faixa de abertura, uma canção
que nasce devagar, baixinha, despretensiosa, com seu conjunto
se montando e adquirindo volume aos poucos. Uma explosão
violenta de guitarras não tarda a acontecer e logo
temos uma senhora música, com direito a algo que
se parece com um refrão e tudo mais. Grande abertura.
E o álbum segue com as guitarras conduzindo as melodias,
solando, experimentando, ou mesmo fazendo qualquer barulho.
Às vezes você jura que eles estão inventando
a música em tempo de execução ali,
e o fazem com impressionantes habilidade e criatividade,
tal a beleza entrelaçada à sensação
de espontaneidade da coisa toda. Rain on Tin é um
exemplo disso, um espetáculo de guitarras que começam
furiosas ao lado do vocal de Thurston Moore, mas logo transmutam-se
em um (vasto) oceano de tranqüilidade e melodia, tornando-se
as protagonistas únicas da música - sim, Thurston
Moore cantou somente uma dúzia de palavras. Elas
avançam até retornarem na metade da canção
a uma violência cheia de feeling e baterias ensandecidas,
aprontando logo depois um recomeço em direção
a mais uma viagem melódica apoteótica, que
termina após sete minutos e 51 segundos extasiantes.
Encontramos outro grande momento de Murray Street na sutileza
emoldurada por guitarras mais controladas de Disconnection
Notice, cheia de microfonias e pequenos interlúdios
ao longo de seus mais de seis minutos.
As três faixas citadas
até aqui são cantadas por Thurston Moore,
e sua última participação vocal se
dá em Radical Adult Lick Godhead Style, na qual ele
fala de coisas cotidianas como Nova Iorque, Lou Reed e "bubblegum
disaster", amparado por uma estridente sinfonia de
microfonias que deságua em um final inaudível.
Lee Ranaldo comanda Karen Revisited, que lembra um pouco
o disco anterior devido à sua tortuosidade. Coincidência
ou não, o resultado é irregular. Mas também
é a música mais longa do álbum e tem
seus bons momentos, concentrados principalmente no grandioso
epílogo - que, pode-se dizer, começa após
a última palavra de Lee antes ainda dos três
minutos corridos e se estende por mais uns sete - cheio
de harmonias climáticas e experimentações
que desconstroem e reconstroem a melodia seguidamente.
O vocal de Kim Gordon aparece
nas duas últimas faixas: na nervosa e estilhaçada
Plastic Sun e na enigmática viagem conduzida por
Simpathy For The Strawberry. Se por um lado Plastic Sun
acaba passando meio batida com seus poucos mais de dois
minutos, Simpathy For The Strawberry é arrasadora.
Melodia aqui inexiste, sendo substituída por sucessões
de ruído contido e guitarras em forma de ondas intensas
e despadronizadas. Apesar da marcação fixa
de baixo e bateria, as rédeas ficam por conta destas
torrentes, que oscilam entre o nebuloso e o vertiginoso,
com seus diversos graus de personificações
intermediárias ocupando novamente quase uma dezena
de minutos. Para fechar seu décimo segundo LP, a
banda explorou as possibilidades da guitarra com muita classe
e apuro técnico, segurando um pouco a sede pelo caos
barulhento, que acaba instaurando-se no finalzinho, protagonizando
os últimos momentos da música. Nesse último
minuto, a banda apela para riffs monstruosos e batidas colossais,
um verdadeiro pesadelo que destroça o hipnotismo
reinante até então. Épico de gala,
grand finale para fechar também aqueles "best
of" caseiros em fita k7 que gravamos para as nossas
bandas preferidas que já possuem muitos discos.
A impressão maior
ao final de "Murray Street" é que o disco
soa bastante homogêneo e maduro, com a banda pregando
seu evangelho - melodia aliada às experimentações
e aos megatons de guitarras - de maneira mais harmônica,
equilibrando esses elementos melhor do que fizera no disco
anterior. Não acho que o prestígio do Sonic
Youth tenha sido arranhado em nenhum momento (até
porque não considero "NYC Ghosts and Flowers"
tão fraco como diz a maioria das críticas
que eu li), mas isso não impede que a banda mostre
novamente que é capaz de gravar discos memoráveis
não somente para uma parcela mais restrita de fãs.
Muito pelo contrário: discos como "Murray Street"
são sempre bem vindos. E que venha o próximo,
pois o reinado do Sonic Youth ainda não tem data
para acabar.