A resposta está no cenário
em que "Tim" está inserido. Imagine 1985.
A década de oitenta, que tanta gente hoje está
relembrando como uma época maravilhosa onde tudo
era o máximo e todos foram felizes. Será mesmo?
Bem, vamos falar de rock. Tente achar o seu lugar na atmosfera
oitentista. Você cresceu acreditando nos ideais libertários
do punk rock, no do it yourself, mas lá pelas tantas
percebe a incoerência de estar preso a um livrinho
de regras que dita o que pode e o que não pode fazer
sob pena de se tornar um "traidor". Por outro
lado, você gosta de som pesado, mas não tá
a fim de encarnar o satânico diabólico comedor
de criancinhas e tampouco usar calça de lycra e cabelo
estilo poodle. Acha o new wave colorido e bobo demais mas
o seu lance também não é usar só
preto e andar em tribos que cultuam a depressão e
ir a festas só para os iguais. Será possível
que todos precisavam ser personagens no rock dos anos 80?
Não existiam pessoas reais?? Sem maquiagem????
Se você se identificou com o parágrafo
acima, o Replacements é a sua banda.
A banda foi formada em Minneapolis, isolada
dos grandes centros, o que significou muito tempo de underground
até conseguir um contrato que permitisse ter um disco
decentemente distribuido. E esse disco foi "Tim",
depois de quatro álbuns e um EP lançados enquanto
banda independente. "Let It Be", de 1984 já
havia sido um grande trabalho, mas foi com "Tim"
que os Mats conseguiram conquistar seu lugar no então
humilde espaço de rock alternativo.
O Replacements começou como uma banda
punk, mas pouco a pouco foram assimilando novos elementos.
"Tim" foi o disco mais diverso da banda até
então, com pouca coisa que remeta ao punk, exceto
o espírito. "Tim" começa com "Hold
My Life", música acertadamente escolhida como
faixa de abertura. A melodia vai encaixando aos poucos,
meio que à força, como se a banda estivesse
aquecendo para começar de verdade. E, talvez por
essa sensação de abertura, a impressão
é de que a sonoridade do disco vai ser baseada em
"Hold My Life", rock básico com acentos
de hard rock. Mas a seqüência traz uma guinada
significativa em "I'll Buy" e "Waitress in
the Sky", onde o Replacement busca inspiração
nas origens do rock 'n roll. "I'll Buy" é
um rock dos mais tradicionalistas, com paradinhas que remetem
a Chuck Berry ou Little Richards. Já "Waitress
in the Sky" tem uma levada, principalmente no baixo,
que não faria feio se estive no repertório
de alguma banda revisionista do rockabilly dos anos 50/60
como o Stray Cats.
Mas a banda também ataca no hard rock,
e soa bem contemporânea (em se tratando de anos 80)
nas músicas "Dose of Thunder" e "Lay
it Down Clown". Talvez "Lay it Down Clown"
não seja tão contemporânea assim, já
que se aproxima de um Aerosmith antigo, anos 70, entre "Toys
in the Attic" e "Lightning Strikes".
E então temos as baladas. Ausentes
dos primeiros discos da banda, com o tempo se mostraram
uma especialidade do talentoso Paul Westerberg. "Tim"
traz duas delas: "Here Comes a Regular", que encerra
o disco, e "Swingin Party". "Swingin' Party"
é especialmente emblemática. É surpreendente
encontrar uma música assim num disco de uma banda
que começou no punk. Doce e tranquila, naquele clima
"paz de espírito", a música conquista
de imediato pela simplicidade. É por exemplos como
"Swingin' Party" que dá acreditar naquelas
entrevistas de compositores que dizem que a música
vem pronta, como se existissem em uma outra dimensão,
bastando captá-la. "Swingin' Party" poderia
ter sido composta por artistas dos mais diversos. Claro,
com uma 'embalagem Replacements', a música agrada
facilmente a um ouvido roqueiro. Mas, mudando o arranjo
e o intérprete, daria para expor a qualquer tipo
de público. Em um momento de delírio fui capaz
de imaginar Julio Iglesias cantando "Swingin' Party".
Ainda vou mostrar essa música para minha mãe.
Para "Here Comes a Regular" já é
outra história. A ênfase está toda na
letra, belíssima, que fala do sujeito tomando consciência
de que vida está passando em branco, na mesa do bar.
"Call out your name / Here comes a regular / Am I the
only one who feels ashamed?"
Ao longo do disco, apenas "Little Maskara"
retoma os ares de rock clássico de "Hold My
Life", que, afinal, é o elemento mais marcante
no som do Replacements, mesmo com toda a mistura presente
no disco. Segundo críticos e fãs, "Little
Maskara" se aproxima bastante de Rolling Stones, mas
se alguém aí resolver falar de Bruce Springsteen,
também não fica muito longe.
Para terminar, logo no começo do texto
há uma menção a duas músicas
extraordinárias. E é muito fácil identificar
quais são: "Bastards of Young" e "Left
of the Dial". Ambas estão numa outra esfera,
não dá para traduzir de outro modo senão
puro Replacements. "Bastards of Young" é
um verdadeiro hino, com refrão de cantar junto e
letra feita sob medida para a geração a qual
Johnny Rotten se referia quando cantava 'no future for you'
em Anarchy in the UK". Chama a atenção
a maneira como a música acaba. Quando tudo leva a
entender que vai terminar em fade, vem uma quebradeira caótica,
como se uma engrenagem tivesse se soltado, fazendo o andamento
ficar trancado no quebra-quebra da bateria e zoeira de guitarras.
"Left of the Dial" é uma
das músicas mais marcantes do rock alternativo dos
anos 80. É daquelas músicas que apenas ao
ouvir o riff na introdução, se tem a clara
noção de se trata de algo especial. Arrepiante.
Como dá para pegar pelo título, a música
fala em ouvir a banda que só toca nas rádios
à esquerda do dial. Nos Estados Unidos eram as College
Radios, rádios não comerciais de baixa potência
que se transformaram no principal reduto de música
boa numa época sem internet.
Depois de "Tim", o Replacements
seguiu firme em mais três discos de estúdios
e se separou pouco antes de poder se beneficiar da exposição
que o rock alternativo obteve nos anos 90. Hoje a banda
é quase um mito para aqueles que a cultuam, e são
responsáveis diretos por muitas bandas boas e ruins
que surgiram depois deles. Paul Westerberg hoje segue uma
carreira solo consolidada entre um pequeno público
fiel e apaixonado, depois de um começo vacilante
na notória trilha sonora de Singles, em 1993. O baixista
Tommy Stinson hoje queima o filme fazendo parte da atual
formação Frankenstein do Guns'n Roses. O guitarrista
Bob Stinson, responsável pelos melhores momentos
instrumentais da banda, acabou morrendo de overdose em 93
depois de um longo histórico de abusos. Do baterista
não se têm notícias, mas o cara hoje
em dia deve ter o maior orgulho de ter feito parte de uma
verdadeira instituição do rock americano.