"Ten" foi o primeiro
disco pirata que comprei
Houve um tempo em que computador
era coisa de cientista, de verdadeiro nerd. Um computador no quarto
era tão impensável quanto um detetor de metais na
porta de casa. Nessa longínqua época (a uns dez anos
atrás?), as pessoas estavam limitadas aos canais disponíveis
de trocas de informação, aos veículos tradicionais
que traziam novidades na forma de revista, rádio e televisão.
Ou através da clássica sugestão de um amigo.
Para um adolescente, manter-se ciente
das novidades e recomendações era igualmente complicado
e divertido. Na fase da vida onde não se tem um centavo para
comprar discos, a turma recorria à métodos marcantes
para ter acesso à uma sugestão, à uma indicação
de um novo trabalho de determinada banda ou do artista que estava
se destacando. Muitos artistas que chegavam nos ouvidos brasileiros
como novidade já estavam com anos de carreira lá fora.
O veículo especializado do
jovem brasileiro que curtia música nos anos oitenta e início
dos noventa era a finada revista Bizz. A publicação
mensal contava com bons jornalistas que faziam um panorama geral
do que acontecia, com críticas de discos e entrevistas. Havia
até uma saudosa seção, chamada "Zona Franca",
onde a redação pinçava recomendações
de discos que haviam sido editados no exterior, verdadeiros cálices
sagrados que serviam muito mais para provocar água na boca
dos leitores do que para impulsionar a compra de importados. De
qualquer forma, a revista traçou um estilo de comunicação
ímpar, onde ocorreu na prática o tal jornalismo cultural.
Em 1991, com a chegada da MTV, criou-se uma outra mudança
nos hábitos de quem gostava de música. Antes reféns
das programações locais de rádio e da taxa
mensal imposta pela compra da Bizz, o telespectador tinha vinte
e quatro horas de música em casa, num formato despachado
que convencia-o de que na tela estavam todas as novidades que ele
precisava conhecer. A explosão do Nirvana foi o maior exemplo
disto: o programa Gás Total mandava bala em "Smells
Like Teen Spirit" e o apresentador Gastão Moreira não
poupava elogios à banda. E você saía na rua
e os amigos comentavam essas novidades, e a turma compartilhava
os vinis adquiridos. Fita K7 era objeto indispensável, o
verdadeiro veículo para se registrar o disco emprestado ou
uma execução especial numa estação de
rádio. Nossas coleções acabavam agregando histórias
pessoais – para cada título, uma história diferente
de como aquilo foi conquistado. Mas em todos esses casos, a grande
diferença era o estabelecimento das fronteiras, do escopo
do consumidor: tudo era selecionado pelas redes que veiculavam as
informações.
Comprar um disco naquela época
então era algo muito mais delicado. A limitação
era o que estava na prateleira, a probabilidade de você conhecer
mais do que o vendedor era incrivelmente remota. De fato, o vendedor
de discos era um cara respeitado, que podia te dar a barbada e oferecer
"Bossanova" dos Pixies como um som que só ele e
você conheciam. Com a grana contada, um disco embaixo do braço
era o início de uma longa relação de amor –
afinal de contas, aquela bolacha tinha de justificar sua aquisição
e repousar sobre o prato do toca-discos por alguns bons meses. Dinheiro
nunca foi capim. O entusiasmo não se limitava à satisfação
de conquista, pois era acompanhada de uma viagem visual indispensável
em tal cerimônia. O vinil tinha uma capa grande, com fotos
grandes, letras de músicas impressas que complementavam o
som grave que saía das caixas do três-em-um. Ouvir
um disco era um deleite, uma celebração com direito
a portas trancadas e algumas horas de isolamento total.
O advento do CD foi o início
de uma grande mudança nesse hábito indescritível.
O novo formato popularizou a venda de música, mais portátil
e compacta, mais prática de se manusear e transportar. As
gravadoras reduziram o tamanho dos encartes e apostaram no som digital,
cuja superioridade é discutida até hoje pelos amantes
do velho vinil. O mercado aos poucos voltou-se para um produto de
grande consumo, sendo encontrado em maior quantidade e ao alcance
de classes econômicas menos favorecidas. Entretanto, tal incremento
na oferta musical abandonou alguns pontos importantes no ritual
do saudoso disco de vinil, como a ênfase na embalagem (já
abriu um double gatefold na sua vida?) e a cumplicidade entre ouvinte/produto
no seu delicado manuseio. Os usuários de vinil tinham todo
um cuidado em trocar agulhas e escolher cabeçotes de qualidade,
de repousá-las cuidadosamente sobre as ranhuras do disco.
Experiência que foi automaticamente mutilada com o botão
"play" do CD. Essas mudanças, cujo significado
não foi percebido na época, hoje representam o primeiro
passo na mudança de valores que a música comercial
tinha para o consumidor. Abriu-se mão de valores culturais
do processo de ouvir música em prol de interesses comerciais,
influenciando os hábitos e os valores do consumidor. Ele
ficou mais frio em relação à sua coleção.
O incremento de oferta oriundo do
novo formato, da praticidade de venda e do número cada vez
maior de segmentos artísticos nos anos noventa proporcionaram
uma época de ouro para as gravadoras nacionais. A MTV transformou
o underground em mainstream e o leque de opções aumentou
exponencialmente. Artistas antes desconhecidos foram contratados
e as lojas de disco ficaram pequenas para acomodar o grande número
de novidades. Só de Seattle saíam cinco, seis novidades
por mês. No Brasil, as preguiçosas e jurássicas
gravadoras nacionais reduziam o escopo das ofertas, limitando o
número de opções aos artistas que haviam causado
mais repercussão. Na prática, tínhamos Faith
No More e Soundgarden nos supermercados, mas TAD e Beat Happening
só importando (convenção de qualquer brasileiro
amante de música que persiste até os dias de hoje).
Preguiçosa e perdida como sempre, a indústria nacional
deixou a cargo de seus diretores artísticos e profissionais
de mercado fazer a triagem do quê, quando e como seria lançado
no Brasil. O hábito de alterar encartes e picotá-los,
que já existia nos vinis nacionais, foi elevado às
alturas. A depreciação do CD nacional frente ao importado
foi inevitável e o brasileiro comprou muitos CDs com qualidade
inferior à da opção gringa. As impressões
do discos eram muitas vezes ignoradas, o CD chegava prateado com
míseros caracteres em preto. As capas eram mal reproduzidas,
a lateral de muitos títulos saíram em fundo branco
com porcas letras pretas. E a nojenta prática de aniquilar
encartes tornou-se comum.
Certa vez, as Lojas Americanas veicularam
uma promoção de CDs dentre as quais ofereciam "Ten",
do Pearl Jam, a preço de banana. Fã da banda, já
tinha tido a oportunidade de gravar o disco a partir de um CD importado
emprestado por uma amiga. Tinha muito viva em minha mente a imagem
do encarte, com as letras escritas pelo próprio Eddie Vedder,
a foto da banda batendo as mãos com num mini-pôster
e o disco impresso com cores rosadas. Quando assisti a propaganda
da promoção na tevê, dei de mão nos meus
trocados e corri para o centro da cidade, vendo a grande chance
de me ver livre daquele combalido K7 e finalmente acompanhar as
músicas com os rabiscos de Vedder na mão. Pelo preço
que podia pagar. Cheguei, comprei, fui para casa. E, na hora de
abrir o CD brasileiro, percebi que havia comprado o primeiro CD
pirata da minha vida, através da Sony Music Brasil: "Tem"
não tinha encarte. A capa foi limitada ao logotipo da banda
e as mãos dos cinco integrantes, o efeito de mini-pôster
deu lugar a duas páginas em branco. A contracapa vinha com
uma reprodução chinelona com uma reserva em branco,
abruptamente inserida para acomodar o código de barras e
os dizeres da indústria nacional. As cores rosadas do disco
foram substituídas por caracteres pretos impressos diretamente
na mídia. Senti-me enganado.
O fato se repetiu por muitas vezes
em outros CDs que comprei, algo que foi começar a melhorar
a partir da segunda metade da década de noventa. Mas as conseqüências
dos erros foram irreparáveis, uma vez que a própria
indústria comunicou implicitamente aos consumidores que todos
os valores agregados em seus produtos no decorrer dos anos não
eram mais importantes, que o real valor estava no som ali dentro
registrado, na satisfação proporcionada pelo que saía
nas caixas de som. Mal desconfiava ela que tais conseqüências
decretariam sua falência alguns anos mais tarde.
Hoje, como todos estamos observando,
os paradigmas estão mudando de forma rápida e incontrolável.
As novas gerações estão formando outros conceitos
em torno da música e de seu consumo. Notamos jovens cada
vez menos apegados à compra de discos ou à fidelidade
a artistas. Eles pulam de barco em barco, gravam discos em casa
oriundos de arquivos conquistados gratuitamente na internet. A cumplicidade
entre o ouvinte e o artista chegou à estaca zero, graças
à facilidade com a qual se acessa a música. Tudo muito
volátil, descartável. Acima da questão econômica
implícita a essa atitudes, está a questão cultural,
o perfil da nova geração. A tecnologia deu poder ao
consumidor escolher o que quer ouvir, derrubou todas as fronteiras,
o vendedor da loja de discos está prejudicado porque passa
dois turnos escorado na estante enquanto seus ex-compradores estão
recebendo sugestões de amigos da Nova Zelândia. A MTV
mudou significativamente sua programação, abrindo
mão da música que ela já não mais consegue
controlar. Bizz? Morreu. As rádios tornaram-se grandes veículos
das gravadoras, que pagam pelo espaço e tentam emplacar artistas
de massa que consigam arrecadar alguns compradores em volume suficiente
para evitar prejuízos. Em vão. E o povo agora não
compra mais CDs piratas produzidos pela indústria nacional:
ele faz em casa ou compra do Paraguai. E o MP3 consagrou a idéia
que as gravadoras nacionais insistiram em difundir nos anos noventa:
o que interessa é mesmo o que está registrado, o som
que sai das caixas. O resto é história de dinossauro.
Vicente Moschetti, 26 anos, é vítima
incurável da voracidade comercial das gravadoras.
06/03/2004
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