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Dois espelhos ou pó
Royal
Dia
após dia vivia. De um dia a outro. Ao longo dos anos. Zorkin,
em seu trabalho diário deliberado pelos deuses do Olimpo,
continuava, e continuava, esperando o fim de semana que nunca haveria.
Criatura
muito querida, sim, daquelas que vivem em florestas encantadas.
Só deveria ser mantido longe das músicas que o faziam
chorar tão alto que era possível ouvi-lo até
de Alfa-Centauro. Em suma, afastado de outros perigos que o fizessem
pensar.
O
que, obviamente, era completamente inútil. Naquela escuridão
de azul-esverdeado, recortada por uma lua tênue, ele se entregava
aos vestígios de palavras apaixonadas entoadas desesperadamente:
"Over
and over we die one day after the other"
Há
algo mais comoventemente triste do que isso? Over and over, again
and again, a cada momento, de momento em momento, sem piedade. E
assim se esvai cada pedacinho translúcido e puro de vida
e de tempo.
"Over
and over"
Over
and over and over and over... Podia cantar a música inteirinha
assim, se ainda lembrasse da melodia. O sentido ia ser o mesmo.
Por
que não podia? Cantar sua música. Por que não
podia? Acelerar o passo e voltar ao seu abrigo perto do mar. Por
que não podia retornar o mar e às suas sete poéticas
divisões?
"we die one after the other" (1)
Pessoas,
dias... Já ouvira dizer que há mais pessoas do que
dias... Ou seriam mais dias do que pessoas? 30 pessoas já
passaram para cada viva... Não, não... Mas já
se passaram 79 dias desde que... Sim, sim... Ah! Pessoas, dias,
tanto faz.
E
bruscamente irrompeu um outro insight / flash / lamparina:
"Swimming
in a fish bowl, year after year" (2)
Por
isso não podia tomar o mar... Dentro de um aquário
de vidro, sim senhor. E agora o tempo era impiedoso, vindo em cascatas,
enxurradas, tempestades, trovoadas. Capricho dos deuses... Anos,
quem diria, anos! Eufemismos doloridos! Ha, milênios eram.
"We're
just two lost souls swimming in a fish bowl..."
Hmm,
é isso! Como não havia percebido antes!... Como todos
ali morrem um depois do outro, então... então não
há aquários suficientes. Isso! Golzin do Zorkin!
"The
chains lie broken, one by one" (3)
E
por achar que as tragédias reais já estão de
bom tamanho, o nosso querido Zorkin resolveu presentear-nos-alguns
um final feliz. Cai cada muro, cai cada corrente. Quebram-se todas
as águas-fortes, torres de vigia adormecem.
E
então, já alçado a novos vertizontes, a pergunta
que não cala é: "qual diabos será a verdadeira
razão daquela banda ter tomado para si uma inscrição
mezzo egípcia mezzo maia?"
Não
sei, Zorkinho, não sei... Mas um dia tentaremos descobrir.
Absorto e intrigado, Zorkin tropeçou numa tartaruga e sujou
seus olhos de terra.
(1) One Hundred Years, The Cure
(2) Wish you were here, Pink Floyd
(3) Totally Natural, ... And You Will Know Us By The Trail of Dead
Natalia cultiva com carinho uma plantação
de peixinhos dourados.
23/01/2003
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