O
Mr. Bungle começou como mais uma banda de colégio
na cidade de Eureka, norte da California, por volta de 1984.
O vocalista Mike Patton e o baixista Trevor Dunn, colegas
na Eureka High School, já tinham contato musical
em bandas insignificantes, chegando ao nome Mr. Bungle quando
o guitarrista Trey Spruance juntou-se a eles. Com o saxofonista
Theo Lengyel, o baterista Jed Watts e o trumpetista Scott
Fritz, a banda revelou sua primeira encarnação
(o nome "Mr. Bungle" foi tirado de um vídeo
educacional que ensinava higiene pessoal e bom-comportamento
ao público infantil, numa alusão ao personagem
porcalhão que dava nome ao vídeo).
Cartaz de divulgação da primeira fita
demo |
Sua
primeira fita demo, "The Raging Wrath Of The
Easter Bunny", foi gravada na páscoa
de 1986 e, obviamente, revelava toda a fúria
adolescente e o descompromisso de uma rapaziada
de 18 anos que estava concluindo o período
escolar. Ouvia-se ali death metal e grind core acompanhado
de outros instrumentos improváveis, num aglomero
sonoro praticamente inaudível. Já
em 1987, uma segunda demo foi gravada para distribuição
entre as rádios locais. |
"Bowel Of Chiley" foi
registrada com Hans Wagner na bateria e Luke Miller nos
sopros e mostrava músicas um pouco mais audíveis
e definidas, fortemente vinculadas ao funk/ska, recheadas
de guitarras sujas e letras imbecis (nos anos seguintes,
esse K7 chegaria ao público através de bootlegs
ilegais). Nesse período, os saxofones e trumpetes
já se faziam mais necessários na definição
do som do sexteto, embora o amadorismo e a inquietação
adolescente predominassem. A formação ainda
lançou uma outra fita demo em 1988, "Goddammit,
I Love America", com sonoridade ainda bastante vinculada
ao ska, revelando pequenos saltos na qualidade geral dos
músicos como conjunto (nessa fase é bastante
perceptível a influência de bandas de ska como
o Fishbone).
A configuração mais representativa da banda
se daria com a saída de Wagner e Miller, substituídos
por Clinton Bär McKinnon (sopros) e Danny Heifetz (bateria)
que gravou a última e mais cobiçada demo do
Mr. Bungle: "OU818", em 1989. Essa gravação
representa exatamente o meio do caminho entre os últimos
suspiros adolescentes e o início da banda que tornaria-se
objeto de culto em alguns anos. Com som bem definido, o
formato da demo anterior permanecia, embora acrescido de
novos detalhes e quebras frenéticas de ritmo, revelando-os
compositores interessados em impulsionar sua música
para os mais divergentes destinos. A acessibilidade de "OU818",
comparada com os registros anteriores, deixava o som do
Bungle forjado o suficiente para comunicar-se de forma mais
eficaz com seja lá qual fosse o público disponível.
Imagens como essa tiraram o sono de muito marmanjo
nos anos 90 |
No final de 1988, enquanto cursava
Literatura na Humbolt State University, Patton presenciou
um show do Faith No More, banda com relativa notoriedade
no cenário universitário californiano. Entregou
ao guitarrista Jim Martin uma cópia de "The
Raging Wrath Of The Easter Bunny" e acabou sendo convidado
a integrar a banda, logo após a demissão do
então vocalista Chuck Mosely. Patton escreveu em
duas semanas as letras de "The Real Thing", disco
que estava sendo gravado por sua nova banda e lançado
no ano seguinte. Em 1990, quando já percorria outras
cidades e países em turnê com o Faith No More,
viu o hit "Epic" estourar na América do
Norte e na Europa, sendo tragado pela colosso do sucesso
comercial. Foi exatamente esse súbito triunfo mercadológico
do Faith No More que trouxe ao Mr. Bungle uma oportunidade
única: a gravadora Warner, que era dona do passe
do Faith No More em um de seus selos subsidiários,
viu nos rapazes de Eureka uma possibilidade de pegar carona
no sucesso do "emprego titular" de Patton.
Com contrato assinado, a banda entrou no estúdio
ainda em 1991 (no mesmo ano em que o Faith No More tocou
no Brasil) e, produzidos pelo referencial saxofonista John
Zorn (uma grande influência para os músicos
da banda), registrou seu debut numa gravadora major. Naquelas
alturas, a demo "OU818" já estava plenamente
esgotada, disputada a altos valores no mercado de gravações
raras, e de certa forma alguma expectativa em torno do disco
era nutrida pela horda recente de fãs do Faith No
More, certos de que receberiam mais uma seqüência
de faixas funkeadas embaladas pelas performances do carismático
vocalista. Mas "Mr. Bungle", o disco, revelou-se
tão paralelo quanto a condição da banda:
funk e ska evoluídos a alegorias circenses e um senso
macabro de ironia. Do humor negro representado pelos palhaços
assassinos do encarte aos samplers pornográficos,
o disco, composto por faixas esquizofrênicas e de
difícil classificação, de forma alguma
se relacionava com o rock de "The Real Thing".
A banda aproveitou várias faixas da demo
anterior, devidamente contextualizadas na obra,
repelindo os ouvintes menos pacientes mas atraindo
toda uma horda interessada em mergulhar em outras
formas de ouvir música. Para muitos, "Mr.
Bungle" foi o disco que apresentou o experimentalismo
e a falta de rigor musical como uma alternativa
empolgante e interessante. Esses traços foram
tão fortes que o próprio Faith No
More foi inundado por iniciativas menos convencionais
em seus discos seguintes. |
"A Cotton Candy Autospy":
O livro que emprestou as magníficas
ilustrações para o primeiro disco |
A satisfatória receptividade
do disco de estréia somada com o interesse oriundo
do sucesso do Faith No More proporcionou ao sexteto a possibilidade
de promover turnês que revelaram mais um motivo de
veneração por parte de quem os admira. Seus
shows tinham apelo teatral, repletos de acessórios
bizarros e máscaras que escondiam a identidade dos
músicos, criando uma imagem oposta ao que os fãs
de Patton poderiam esperar. Musicalmente, executavam sem
piedade e com muita competência o caleidoscópio
sonoro do álbum, sem regalias ou concessões
para o público. Naquele momento, o Mr. Bungle já
era uma banda cult, avessa ao sucesso comercial relacionado
com o Faith No More.
Com a turnê encerrada, os músicos foram ao
encontro de uma prática muito comum na trajetória
da banda: os trabalhos paralelos. Patton gravou dois discos
com o Faith No More e participou da cena avant-garde com
o Naked City de John Zorn, Dunn embrenhou-se no jazz experimental
de São Francisco. Spruance deu vida ao metal extremo
de seu Faxed Head e chegou até mesmo a integrar o
Faith No More para gravar as guitarras do álbum "King
For A Day Fool For A Lifetime". Heifetz gravou com
o Dieselhead, sua banda de traços country. Alguns
deles deixaram participações em faixas individuais
de outros artistas, outra prática freqüente
para eles.
Tais experiências refletiram massivamente no segundo
disco do Mr. Bungle, "Disco Volante", de 1995.
Lançado sem muito alarde, com Patton e seu Faith
No More já um tanto afastados da grande mídia,
o álbum persiste como fruto de devoção
de muitos apreciadores de música experimental. Totalmente
desvinculado do disco de estréia, "Disco Volante"
mostrou um amadurecimento impressionante dos músicos,
com composições arrojadas e muita competência
na utilização dos referenciais avant-garde
coletados durante o período de trabalhos paralelos.
Peixe-víbora: finalmente revelado o animal
na capa do "Disco Volante" |
Toda a experiência com
funk iniciada nas fitas demo e sacramentada no disco epônimo
foi deixada de lado, dando lugar a músicas mais experimentais
e meticulosamente elaboradas, sobressaindo-se em vários
momentos em relação a mestres como o próprio
Zorn. Sombrio, "Disco Volante" usava múltiplos
idiomas, mesclava sonoridades eletrônicas com música
étnica, recorria a trilhas de desenho animado e não
poupava oportunidades de flertar com os mais impensados
gêneros musicais. Para muitos, um dos mais interessantes
discos de música experimental já lançado.
Uma versão limitada em vinil ainda incluía
um single de sete polegadas com uma faixa inédita
gravada por Spruance, Dunn e Heifetz, chamada "The
Legendary Paper Project By The Secret Chiefs Trio".
Essa brincadeira se transformaria mais tarde no principal
projeto de Trey Spruance.
O status cult da banda tomou proporções ainda
maiores, oportunizando turnês por Estados Unidos,
Europa e Austrália (com shows de execução
impecável e muitas covers inusitadas). Para essas
turnês, o grupo contou com a participação
do percussionista William Winant, que havia contribuído
também com as gravações de "Disco
Volante". Ao final das turnês de divulgação,
a banda entrou mais uma vez em suspensão para que
seus integrantes participassem de outros trabalhos. Patton
gravou em 1998 o último disco com o Faith No More,
"Album Of The Year", além de dois álbuns
solo de registros experimentais, lançados pela gravadora
Tzadik de John Zorn.
Patton abduzindo a platéia |
Participou
também de inúmeros shows de improviso
na cena avant e de incontáveis gravações
com os mais diversos artistas (inclusive com o Sepultura).
Spruance, Heifetz e Dunn lançaram álbuns
integrais do projeto The Secret Chiefs Trio (pelo
selo fundado por Spruance, o Web Of Mimicry). Spruance
ainda gravou com o Faxed Head, Dunn participou de
mais trabalhos ligados ao jazz, contribuindo com
Zorn e dando início ao seu projeto individual,
o Trevor Dunn Trio-Convulsant. Heifetz seguiu com
o obscuro Dieselhead. |
O último disco do Mr.
Bungle foi lançado em 1999 novamente pela Warner.
"California" não tinha mais a participação
de Theo Lengyel, contrariado com os rumos musicais adotados
pelo grupo. Musicalmente, "California" apresentava
uma abordagem menos desbravadora, embora não abrisse
mão da inquietação sonora. Um pouco
menos esquizofrênico, o conteúdo revela uma
banda calejada aplicando suas experiências recentes
de forma bem perceptível.
Há
traços do trabalho do The Secret Chiefs Trio
(na surf music e na forte colaboração
de música étnica), grandiloqüência
digna de Las Vegas nos arranjos elaborados e nos
vocais de Patton e uma massiva influência
de trilhas-sonoras a-la Ennio Morricone. O resultado
acabou sendo mais assimilável, evidentemente,
na maneira Bungle que o termo pode ser utilizado.
Enquanto "Disco Volante" agregou muitas
idéias e incessantes mudanças de ritmos
e gêneros de forma intercalada, "California"
tem suas faixas bem distintas entre si, situando-as
junto de seus compositores. |
A última vez em que o Mr. Bungle jogou mini-golf |
Para muitos fãs, o álbum
não mantém o mesmo nível de desenvolvimento
e maestria do anterior, embora ele revele a relativa facilidade
do grupo em interagir com peças musicais tão
complicadas. A sua divulgação iniciou com
uma turnê nos Estados Unidos, sendo prejudicada por
problemas legais entre a Warner americana e as subsidiárias
que distribuiriam o disco em outros continentes. Tal contratempo
obrigou a banda a fazer outras três turnês na
América até que pudesse chegar à Austrália
e à Europa na segunda metade do ano 2000. O sobrinho
do músico Tito Puente, Ches Smith, integrou a banda
na condição de percussionista em alguns shows,
enquanto Jeff Attridge e James Rotundi foram responsáveis
pelos teclados (um instrumento bastante importante na concepção
de "California").
Encerradas as turnês, o Mr. Bungle entrou num hiato
que aos poucos foi determinando o fim da banda. Mike Patton
inaugurou projetos bem mais ambiciosos – o maior deles
o desenvolvimento de um selo para lançar seus trabalhos
e de outros músicos de verve experimental. Sua Ipecac
já deu cria a algumas de suas bandas-projeto, como
o Fantômas e o Tomahawk, e tem se mostrado o seu grande
foco desde "California". Paralelamente, manteve
a tradição de participar de um sem-número
de gravações com diversos artistas. Trevor
Dunn também é membro do Fantômas, talvez
o mais expressivo projeto de seu colega Patton, além
de já ter lançado mais um disco com o Trio-Convulsant
(pela Ipecac em 2005). Segue firme com suas contribuições
junto de Zorn e outros músicos de Nova York. Trey
Spruance ampliou os trabalhos da Web Of Mimicry, lançando
algumas bandas de caráter experimental e aproximando
seu The Secret Chiefs Trio (sem Trevor Dunn) cada vez mais
da música judaica. Clinton McKinnon e Danny Heifetz
vivem na Austrália, na condição de
chefes de família que flertam com música local.
De alguma maneira, essas camisas floreadas combinam
com "California" |
Nunca houve menção
formal a respeito do fim do Mr.Bungle, embora as declarações
emitidas pelos integrantes no decorrer dos anos tenham se
encarregado de deixar a situação bem clara.
Em uma entrevista à revista Rolling Stone em 2004,
Patton apontou "problemas de funcionalidade coletiva"
e "ciúmes e inveja de um determinado integrante
lentamente eliminando a banda". O golpe final veio
com uma postagem no site oficial de Trevor Dunn em agosto
de 2005. Dunn: "O Bungle está morto. Por favor,
assimilem isso. Estou indo a São Francisco no mês
seguinte para finalmente aposentar nosso depósito.
Uma penca de equipamentos abandonados pelos quais pagamos
$225,00 mensais para ficarem acumulando pó durante
cinco anos".
O Mr. Bungle deixou sua marca
e seus discos até hoje são admirados por quem
aprendeu a apreciar música menos acessível
e mais desafiadora. Muitas bandas de vanguarda bebem na
fonte sedimentada pelos californianos, que são freqüentemente
mencionados em listas de discussão e suas gravações
trocadas pela internet. Seu legado ainda se fez presente
dissolvido nos trabalhos de seus integrantes, que se apresentam
nas formas menos convencionais possíveis. Seus órfãos
não têm muito do que reclamar.
Vicente Moschetti
fevereiro/2006
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