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Rio
de Janeiro, Sexta-feira, 21/10/2005 - Palco Lab
[intro]
Que o ano de 2005 pode ser considerado
um marco na história de shows relevantes no Brasil ninguém
discorda. Mesmo com a concorrência de apresentações
passadas como as de Pixies, Brian Wilson e Mars Volta, o ano está
atravessando um segundo semestre insano, que muitos buscarão
explicação em alguma teoria do caos ou da entropia,
aparentando os eventos com tsunamis e furacões que assolaram
outras terras. Alimentando a tendência e injetando combustível
na iniciativa estão as operadoras de telefonia celular, que
se apoderaram do mercado antes explorado pelas marcas de cigarro.
Competidoras naturais, não só investiram na sempre
contestada idéia de trazer bandas gringas para o país,
mas inauguraram uma corrida para decretar qual delas estaria por
trás do melhor dos festivais. A guerra das telefonias virou
uma guerra de festivais: o público, ao invés de decidir
entre a marca X ou a Y de um modelo, entre a operadora A ou B, acabou
decidindo entre qual(is) banda(s) gostaria de ver. Beleza de impasse.
[Tim]
Nessa ótica, o Tim Festival
usou a experiência de outras duas edições e
construiu uma estrutura digna de aplauso em sua edição
carioca. Mais uma vez apoderou-se da área externa do Museu
de Arte Moderna e fez ali um evento até cosmopolita para
os padrões com os quais estamos acostumados (pelo menos com
a tradicional gambiarra que temos aqui em Porto Alegre). Numa área
central do evento, o tal Village, cujo acesso poderia acontecer
por R$ 10,00, o carioca podia ter o gostinho de andar às
voltas das tendas, comer uma fatia de pizza por R$ 8,00 ou beber
uma latinha de ceva por R$ 4,00. A função social do
evento.
[Lab]
As atrações se desdobraram
por mais de um palco, cada qual com seu preço e pulseira
de acesso diferenciados. De uma maneira geral, o palco Stage (o
maior) recebia as atrações mais acessíveis
e famosas, o Club recebia jazz, o Motomix fazia as vezes de rave
e o Lab trazia alguns nomes de "vanguarda". Numa noite
onde Strokes e Kings Of Leon sugeriam aperto e gritaria de tietes,
algum outro palco automaticamente teria de representar a alternativa
mais coerente. A tal "vanguarda", assim, ganhou meus setentões
(mais taxas da Ticketmaster), já que se desenhava ali a chance
de ver Maurício Takara, Autechre e Vincent Gallo numa parada
só. O espaço Lab encarnava a modelagem vanguardista
a que se propunha e, mesmo sem ter entrado nas outras tendas, tenho
certeza que foi o espaço mais bala: pequenas arquibancadas
laterais proporcionavam acomodação a uma proximidade
incrível do palco, sendo todo o espaço forrado por
um carpete vermelho ao melhor estilo kubrickiano. Para fechar beleza,
telões de ótima qualidade e ar-condicionado fumeta,
gelando até o osso. E o som? O som foi o melhor que já
peguei: bem definido, nítido, perfeitamente dimensionado
para um ambiente de cerca de 2.500 pessoas. Teoricamente, o mínimo
para que a escalação da noite pudesse se apresentar
de forma bastante recompensante.
[a vanguarda carioca não
é bem a mesma que a daqui do sul]
Ao contrário de esperados
cabelos vermelhos, roupinhas de brechó e óculos garrafais,
o perfil do público na noite mais alternativa do evento não
fechou bem com o que era de se esperar. Muitos ali estavam como
eu: vieram para ver o Wilco e o Arcade Fire, não quiseram
topar com a balbúrdia dos Strokes. E, incrivelmente, a vanguarda
carioca é bem comportada, arrumadinha, na qual se identificava
sem muito esforço artistas globais queimando fumo pelas arquibancadas.
"Devem estar aí para babar o ovo do Vincent Gallo",
pensei. Defendendo a vertente das tribos, apenas os caras com barba,
no melhor estilo Los Hermanos de ser, coisa fácil de ser
vista no evento carioca.
[M. Takara + 3]
Quando o som do Takara começou,
pouca gente havia se colocado em frente ao palco. Eu mesmo resolvi
guardar meu lugar nas pequenas porém confortáveis
arquibancadas. Explico: o baterista do Hurtmold já tinha
me vendido seus dois discos solo, de forma que já sabia mais
ou menos o que devia pintar por ali. Show para assistir sentado,
curtindo as eletronices no conforto e conferindo as capacidades
da coisa funcionar no palco. Eu tiro um caldinho de seus discos,
mas eles em vários momentos se concentram na experimentação
massiva, que às vezes cansa um pouquinho, se perde e é
sempre um desafio a mais nesse tipo de festival. Mas o show que
vi, só para eu ficar quieto, surpreendeu. Takara é
alicerçado por dois comparsas, um controla animações
no telão, outro é fincado na bateria. Com essa estrutura,
parte para a briga com uma parafernália eletrônica
e uma bateria extra, que vez em quando ele espanca com gosto. O
que em disco chega a soar por demais artificial ou repetitivo, ao
vivo é anabolizado pelo desempenho certeiro do baterista
de apoio, que em momento algum se confunde com os ritmos quebrados
que produz no instrumento. Takara tem pleno domínio de seus
apetrechos e consegue utilizá-los de forma sincronizada com
as bases que constrói. Meses de ensaio? Não, cancha
mesmo. Fica difícil determinar os momentos em que os músicos
estão improvisando ou estão reproduzindo fielmente
alguma coisa previamente ensaiada. Todo o serviço é
certeiro, com início, meio e fim, o que contribui para um
ótimo resultado geral, mesclando pitadas de pós-rock
com eletrônica da Warp, com melodias e efeitos bem encaixados.
E, mais importante, já prontinho para gringo ver. Por mais
que o público tenha terminado a apresentação
com a mesma calmaria com que começou, já desconfiava
que tinha visto o show da noite.

Maurício Takara
[Autechre, ops, Jamie Lidell]
Mesmo que o Gallo representasse o
auge do vanguardismo da noite, o Autechre seria uma chance de ver
essas bandas que todo mundo diz apreciar mas ninguém na verdade
escuta. Figurinha da incensada gravadora Warp, a dupla representa
esse lance de eletrônico abstrato, de música inteligente,
uma coisa que poderia ter sido ou muito tri ou muito sacal. Mas
o emprego do famoso jargão "problemas pessoais e tal"
justificou o cancelamento da apresentação dos gringos,
desatualizando as informações que constavam no meu
ingresso. Em seu lugar, um outro carinha do selo, Jamie Lidell,
do qual nunca tinha ouvido falar. Não costumo ir a shows
sem conhecer as bandas previamente, o que fez da experiência
um exercício de avaliar o som do cara na lata e na hora mesmo
traçar um veredicto. Para quem comprou o ingresso em busca
dum techno panorâmico, foi um tanto frustrante receber um
Prince reloaded no lugar. Lidell foi acompanhado por um carinha
que usava um óculos de papel, responsável por alcançar
apetrechos ao músico, filmá-lo e confundir a platéia,
que levou uns vinte minutos para se dar conta que ele não
era o músico e não fazia nada além de ajustar
a câmera e alcançar utensílios (um capacete
fazia parte dos cacarecos, por exemplo). Vamos aceitar que mesmo
com o som calcado no funk e no soul, algo como um Prince + Jackson
5 + Warp, o show dele era divertido e ele tinha a manha da parafernália
que controlava (sua indumentária era um roupão de
tigresa e um sapatinho de couro branco). Minha namorada achou a
voz dele parecida com a do carinha do Maroon 5, eu admito que ele
realmente cantava muito. Mas mesmo com tudo isso a coisa não
fluiu delícia e lá pelas tantas resolvi retornar ao
ambiente externo, onde patricinhas cariocas davam um outro contexto
ao festival de música.
Ali tinha um palco free patrocinado
por uma marca de cerveja, onde tocavam naquele momento DJ Marky
+ B.Negão. Não fiquei muito tempo na volta, mas o
povo pulava ensandecido enquanto Marky jogava pesado seu drum n'
bass e B.Negão dava umas enjambradas no microfone. Nada de
vocal de protesto – naquele ritmo e com aquela necessidade
de apenas "bombar a massa", o rapper carioca só
conseguiu ficar nos "uhus" e "ieiés".
Voltei para o Lab, o Lidell estava fechando a escrita e o povo,
vejam só, aplaudia de pé. Lidell, com seu funk/soul
assimilável, representou a familiaridade em meio à
esquisitice das outras atrações.
[Vincent Gallo]
O show menos provável de acontecer
no Brasil foi, quando resolvi comprar o ingresso, alvo de minhas
maiores desconfianças. Mesmo lendo no Gordurama uma crítica
favorável de um show do cara em Camden Town, não conseguia
me convencer que essa iniciativa poderia dar certo no Rio de Janeiro,
por mais que o Lab tivesse a temperatura ideal para isso. "When"
não é o tipo de álbum que, se executado fielmente
num palco, desperta o interesse da platéia, uma vez que ele
só funciona em momentos de clausura. A platéia tem
de estar muito a fim. E Vincent Gallo definitivamente não
combina com uma terra onde se anda de chinelos e bermuda. Tinha
convicção que, para esse lance rolar, o cultuado artista
usaria de artifícios adicionais para encher seu som, tipo
pegar os lances do Takara emprestados. Mas Gallo apostou no seu
cacife e se deu mal. Para começar, a tal grávida gostosa
que tocou o horror em Camden, que àquela altura já
devia estar com a criança nos braços, foi substituída
por um magrão que não trouxe alternativas que justificassem
a ausência feminina no palco. Completando, um outro carinha
ficava mais no baixo, sendo que de vez em quando eles alternavam
as atividades entre o piano e a bateria, que quase não foi
utilizada. Devia ter chamado na amizade com o Frusciante e ter trazido
o cara junto. Gallo contou com um clima que o espaço não
proporcionou, uma vez que o vocal frágil e o som suave e
concentrado em dedilhados de guitarra, tal igual ao disco, simplesmente
se perdeu em meio à conversalhada da platéia. Mesmo
largando mão de suas faixas mais interessantes ("When",
cantada pelo magrão interino, "Honey Bunny"), o
público foi aos poucos dispersando, indiferente ao que se
passava no palco. Bingo.

Vincent Gallo
Ao final do set, umas três
fileiras que ali ficaram em frente ao palco clamaram por um bis,
o qual Gallo fez questão de atender. Voltaram ao palco, tocaram
mais uma e veio a derradeira despedida com um emblemático
"Thank you for staying". Ao meu lado, Caetano Veloso todo
de branco sararicava em meio aos remanescentes. Procurei à
minha direita o povinho maconheiro da Globo, mas eles já
não estavam mais lá.
Vicente Moschetti
Rio
de Janeiro, Sábado, 22/10/2005 - Palco Lab
Memórias não são
traçoeiras. Memórias apenas condensam, bagunçam
e enfeitam a inexorável linha do tempo, de acordo com as
sinapses que piscaram na mente de cada um. O nascer-do-sol misteriosamente
arranca muitos detalhes da minha. Isso significa que não
consigo lembrar a ordem das músicas do show do Arcade Fire.
De qualquer modo, fiz o meu dever de casa, e espero ter o setlist
correto. O importante é que eu não vou esquecer o
estrago que esse setlist fez.
Memória falha ou não,
o que se passou naquela tenda é, de qualquer modo, irreprodutível.
Confesso que a minha expectativa era toda para o Wilco. O "Funeral",
debut do Arcade Fire, seguiu dias a fio na minha vitrola. Isso nunca
se comparou, contudo, à minha fixação pelo
"Yakee Hotel Foxtrot", do Wilco. A noite estaria feita
somente com o Wilco e a sua Jesus Etc. Some-se a isso eu não
lembrar de ter lido sobre a insanidade dos canadenses ao vivo. O
Arcade Fire seria apenas um bônus muito bem quotado.
Isso era o que devia estar pensando
quando as preparações se iniciaram. Movimentação
no palco, apetrechos a rodo: apreensão. Ora, barulhinhos
são bons, desde que não se abuse deles. Nada no "Funeral"
parecia indicar que o Arcade Fire teriam esse mau gosto. De qualquer
maneira, citando o Chapolim, gato escaldado tem perna curta. Será
que teríamos um teatro sem sentido? Teria eu que me distrair
e rir até chegar a vez do Wilco?
Quanta bobagem passa pela cabeça
imatura! Um bando de jovens canadenses subiu ao palco, entoou "ô
ô ôoooo", e isso bastou para o resto todo sumir.
Só vou falar uma vez do público: êxtase. Só
vou falar uma vez de mim: êxtase. Procuro adjetivos para isso
tudo. Só achei superlativos. E superlativos não têm
mais força numa época em que todas as comédias
românticas propagam o "amor da minha vida". Acho
que eu deveria procurar um verbo. Do alto do meu limitado vocabulário,
desconfio que não acharia nenhum verbo também, mesmo
se escavasse todas as palavras já proferidas em toda a história
da humanidade. Quem sabe no dia em que se matematizar a lingüística
eu consiga uma fração irracional adequada.
E "ô ô ôoooo"
era só o começo de Wake Up. A minha atordoação
ainda juntava as peças, trabalhando na velocidade do Homer
Simpson: sim, a banda estava teatralmente vestida, num show de rock,
como se estivesse em um funeral. Sim, eles estavam de luto, mas
dizendo que o que se deve fazer nessa hora é celebrar a vida.
O que eu tentava entender é como isso não caiu no
ridículo. Se fosse qualquer outro grupo de pessoas ali em
cima, não haveria outro resultado que não o ridículo
absoluto. Disco conceitual com auto-ajuda barata? Não cola.
Importação de princípios zens? Jamais. No entanto,
tudo fazia perfeito sentido, porque a música que vinha dali
simplesmente não deixava a coisa ruir. E ninguém estava
profetizando auto-ajuda nenhuma, nem espantando fantasma nenhum.
Estavam, sim, fazendo música. A explicação
parecia plausível, então aproveitei para apreciar
a música como deveria.
Fazer música. É óbvio
que fazer música não pede mais do que um indivíduo
colocando sua arte em ondas sonoras, não importa se para
isso use apenas sua voz, um tambor, ou uma orquestra. O Arcade Fire
usa o que estiver no palco. E eles sabem tudo que existe no palco.
Sabem toda aquela parafernália assustadora? Ouve-se o som
que ela faz. Ela se encaixa perfeitamente na música. Faz
todo o sentido do mundo ver os caras correndo de um lado para outro
para pegar outro instrumento em microssegundos, para dar continuidade
à música, porque você vê que aquele som
é essencial ali. Não se sabe como algum dia já
se criou música sem um espoleta escalando e batucando a armação
do palco. Não se imagina mais um mundo em que capacetes não
viraram instrumentos musicais oficiais. Nada era enfeite fútil;
tudo, mas tudo mesmo, era música. E os caras suavam para
buscar as coisas certas, na hora certa, para virar música.
Neighborhood #2 (Laika) e No Cars
Go seguiram em um terreno já conquistado. A tentação
é de falar que todos estavam "vivendo o momento".
Sabe quando isso faz sentido de verdade? Sabe quando a música
vira Música e simplesmente conta coisas sobre sua mente que
você próprio não sabia? O mais assustador é
quando isso faz mais sentido do que das outras vezes. Você
sabe que está, então, confinado em um show do Arcade
Fire.

Arcade Fire
Prometi não falar do público,
certo? O problema é que o Arcade Fire pareceu realmente comovido
conosco. Eles estavam se divertindo com as boas centenas de pessoas
que sabiam as letras de cor, que cantavam junto e que pulavam desgraçadamente.
Foi assim até na calma Haiti, com a voz de Régine
reinando. E também vieram Headlight Looks Like Diamonds e
Crown of Love. Ah, claro, Crown of Love. Acho que essa era a música
à qual eu tinha mais antipatia. E, heresia, não é
que ela ficou bonitinha ao vivo? Ou eles são competentes
mesmo ou jogaram alucinógenos pelo ar condicionado.
Mal sabia eu o que viria a seguir.
Win Butler, líder da banda, anunciou "Brazil",
e celebrou-se uma versão estilizada e mórbida de "Aquarela
do Brasil". Dispensarei outras metáforas desnecessárias.
Depois dessa, Tunnels alimentou o dia. A minha adoração
incondicional a esta música deve ser uma confusão
causada pelo tom nabokoviano da letra.
Emendaram Power Out, que tem aquela
pitada de the Cure que poucas bandas conseguem aproveitar (fora
o próprio Cure, claro). E a seqüência caiu muito
bem: Rebellion (Lies). Não houve bis. Tentei me consolar
e me convencer de que a tal Música ficou condensada naqueles
minutos extremamente intensos. E, com a corroboração
de algumas teorias físicas, minutos extremamente mais curtos
do que os convencionais. Mas a quem poderia enganar? Vou fazer coro
aos que amaldiçoaram a organização por não
permitir um miserável bis. Não podia haver melhor
final do que "every time you close your eyes, lies, lies"
ecoando. E, mesmo assim, poderia ter havido um bis.
Para não deixar o tom de contradições
de lado, repito as minhas palavras estupefatas: esse foi o show
da minha vida. Escolho com muito cuidado os tais superlativos, sim.
E, mais uma vez, o show do Arcade Fire foi o show da minha vida.
A explicação não está acima; eu nunca
achei nenhuma. Fiquei apenas com a conclusão. E eu encontrei
a conclusão quando começaram os "ô ô
ôooo".
Natalia Vale Asari
A única atração
que considerei imperdível, desde que tomei conhecimento da
escalação deste evento, era o Wilco. Pelo menos eu
pensava assim antes de saber que o Perry Farrell estaria por lá
também, mas desse fato só tomei conhecimento após
o mesmo ter se consumado. Pelo o que me falaram, ele estava apenas
discotecando, mas era bem capaz de eu ter ido para o Rio de Janeiro
um dia antes apenas para ver a figura que fundou o Jane's Addiction.
Infelizmente, quando soube, era tarde demais. Confesso que fiquei
um pouco decepcionado naquele momento, mas algumas horas depois,
eu nem me lembrava disso, nem me lembrava direito de qualquer outra
coisa que estivesse ocupando minha cabeça naquele dia, naquele
semana, se bobear, naquele mês. Naquele intervalo de tempo,
presenciei o show do Wilco, e também a estupefante apresentação
do Arcade Fire, mas o show do Wilco foi aquilo que na hora, e ainda
agora, classifico sem titubear como o show da minha vida. O que
não significaria muito se eu revelar que não foram
muitos os shows assistidos por mim até aqui, mas ganha peso
se levar em consideração que tenho expectativa de
vir a assistir muitos outros shows, mas dificilmente consigo imaginar
que algum deles será mais sensacional do que foi este.
É sempre um experiência
formidável assistir no palco uma banda tocando canções
que você ouve seguidamente, se torna íntimo delas,
cantarola diversas vezes ao longo dos dias, etc. O show de Jeff
Tweedy e cia, para começar, foi especial pois o setlist foi
irrepreensível neste contexto pessoal. Faço nova confissão:
conheço pouco dos três primeiros da banda, até
gosto deles, mas nunca me apresentaram nenhum diferencial que me
fizesse tê-los como discos prediletos, sob qualquer óptica.
O contrário acontece com os dois últimos, "Yankee
Hotel Foxtrot" e "A Ghost Is Born", com os quais
possuo grande ligação. E em seu primeiro show em terras
brasileiras, a banda recheou o setlist com todos os grandes momentos
destes dois espetaculares álbuns.
Pouco tempo após os insanos
músicos do Arcade Fire deixarem o palco totalmente aclamados
pela galera, Jeff Tweedy, Glen Kotche, John Stirratt, Nels Cline
e Pat Sansone entram e se posicionam sem pressa. Jeff, em um de
seus tradicionais paletós surrados, aparência de quem
anda se alimentando muito bem, cabelos mais desgrenhados do que
nunca, inicia o espetáculo com Poor Places. Taí uma
música que, dentre as muitas pérolas de "Yankee
Hotel Foxtrot", nunca tinha me despertado muita atenção,
mas, ao vivo, soou linda como nunca, e funcionou maravilhosamente
naquele momento específico. Explicando melhor: no intervalo
entre o Arcade Fire e o Wilco, eu estava bastante ansioso. Depois
do catártico e barulhento show da primeira banda, a platéia
estava com os nervos à flor da pele, adrenalina a mil, e
pedia fervorosamente um bis dos canadenses, que rapidamente ficou
claro que não iria acontecer. Senti até que o local,
pelo menos ali pelo lado direito do palco onte estávamos
posionados (na arquibancadinha já citada pelo Vicente), esvaziou
um pouco quando percebeu-se que o Arcade não voltaria. O
som do Wilco difere levemente do Arcade Fire, no sentido de que
certamente não daria continuidade ao ritual alucinado que
vinha sendo orquestrado pelos canadenses, pelo menos não
logo de cara, e eu temia o que aconteceria, qual seria a reação
da platéia, até mesmo a minha própria. Mas
essa apreensão foi logo dissipada por Poor Places: a bela
melodia, a voz incomparável de Jeff e o suave e tristonho
crescente da canção foram suficientes para ganhar
a platéia, mudar o ambiente, e dar início a cerca
de duas hora de magnífica música ao vivo.
Kigpin, do "Being There"
veio a seguir, canção de veia country, violões
misturados a guitarras, a banda esbanjando entrosamento e competência,
a despeito de ter em sua formação dois membros praticamente
novos (Pat Sansone e Nels Cline entraram na banda em 2004). Na sequência
a banda atacou com uma sequência inesquecível: Muzzle
of Bees, com seu dócil e preguiçoso arranjo acústico
desembocando em uma das já famosas seções de
descontrução engendradas pela banda (no disco esse
trecho final não chega a ser tão dissonante, mas ao
vivo as microfonias foram ensurdecedoras), em execução
perfeita, emocionante. Os acordes iniciais de Handshake Drugs quase
me fizeram chorar; outra preferência pessoal, uma canção
perfeita, dentro dos meus critérios, e foi a primeira vez
que eu vi in loco uma música que integra a minha seleta listinha
de músicas perfeitas. Cansei de ouvir a versão ao
vivo que está no EP bônus de "A Ghost Is Born",
nos dias que precederam o show, para imaginar como seria. Obviamente,
eu não cheguei nem perto. Depois I Am Trying To Break Your
Heart, um clássico moderno que dispensa maiores comentários,
e Hummingbird, com seu alto astral meio ingênuo, meio rural,
meio difícil de descrever, contagiando banda e platéia.
Aquelas seis musiquinhas ali já tinha sido o show da minha
vida. Sim, eu vi o Pixies ano passado, e mantenho o que eu disse:
aquelas seis musiquinhas já tinham sido o show da minha vida.
Mas tinha muito mais por vir ainda...
A banda visivelmente se divertindo,
Jeff Tweedy à vontade (não é muito do seu estilo
trocar idéias com a platéia entre as músicas,
e seus problemas pessoais são notórios, mas ele me
pareceu um camarada gente fina e naquele momento, bastante descontraído),
a platéia ovacionando, e a noite seguiu perfeita, com o grupo
variando bem o cardápio, naturalmente com a predominância
de músicas dos dois últimos discos. Alguns destaques:
Jesus Etc, com arranjo diferenciado (não importa como a banda
toca esta, pode ser jogando ovos na parede e com uma gaita de fole,
será sempre um música perfeita), a nova Walken (Jeff
jogando pra torcida: "essa foi feita para vocês"),
Via Chicago (ao vivo, ainda mais densa e tempestuosa), Spiders,
War On War, The Late Greats, Misunderstood, I'm A Wheel, intercalando
momentos de caos elétrico e momentos de sublime simplicidade.

Wilco
O bis prolongado e repetido ("nós
quase nunca viemos aqui, por isso continuamos tocando mais e mais!"),
para delírio geral, teve Heavy Metal Drummer (canção
pedida pelo camarada Gustavo por e-mail, com Jeff Tweedy fazendo
questão de dizer que a música foi incluída
por causa disso), as clássicas e perfeitas ao vivo Outtasite
e Monday, e o cover de Bob Dylan I Shall Be Released fechando com
chave de ouro 800 quilates uma noite inesquecível.
Não tem como escapar da discussão
sobre o melhor show do evento. Alguns colegas citam o Elvis Costello,
outros o Television, alguns falam do Strokes, a maioria ficou impressionada
com o Arcade Fire. O Arcade Fire foi de fato sensacional, Elvis
Costello e Television eu não vi mas duvido que tenham sido
ruins, mas daqui uns 40 anos, espero que, com dezenas de bons shows
assistidos na memória, ainda vou estar lembrando do Wilco
emendando Muzzle of Bees e Handshake Drugs, em 22 de outubro de
2005.
Fabricio Boppré
Porto
Alegre, Terça-Feira, 25/10/2005
Indiscutivelmente, as grandes duas
atrações do TIM Festival 2005 foram Wilco e Arcade
Fire. O primeiro mereceu todas as celebrações por
causa de seus dois últimos grandes discos, pela representação
do caráter desbravador que assumiu e pela própria
incredulidade instaurada pela banda ter se deslocado ao Brasil,
com tantos Franz Ferdinands podendo tomar seu lugar num evento tão
incensado. Já no caso do Arcade Fire, a incredulidade pode
ser ainda maior, uma vez que os canadenses desembarcaram na pátria
amada justamente no meio do olho do furacão, com um disco
altamente celebrado e com o apadrinhamento de celebridades caetanovelosísticas
lá de fora. Tentei lembrar de bandas que representassem a
mesma urgência quando se apresentaram aqui, mas só
consegui chegar em australianos que fazem cover do Pink Floyd. Focado
o valor inestimável da iniciativa, pode-se ir um pouquinho
mais além.
Porto Alegre, desde que vou a shows,
sempre foi uma das capitais do refugo, isto é, de atrações
internacionais cuja idade e peso dos artistas já estouraram
o limite. Salvo algumas iniciativas recentes (Placebo, por exemplo)
e outras memoráveis (Faith No More), os gaúchos aqui
até têm a oportunidade de ver atrações
grandes, porém, com décadas de defasagem ou com apelação
aos reféns das FMs. No livrinho da irrelevância, tocaram
recentemente aqui Dire Straits, Lenny Kravitz, Offspring, Living
Colour e mais um monte de artistas que estão claramente capitalizando
no início da decadência ou mesmo atirando no mercado
terceiro-mundista, contando com a inocência dos selvagens
latinos. Com base nisso, é de se tirar o chapéu para
a iniciativa do TIM versão Porto Alegre: aproveitar o embalo
e trazer Strokes e Arcade Fire para tocar aqui, dando um gostinho
do que já vem acontecendo no centro do país há
alguns anos.
Justamente por essa defasagem em
relação ao centro do país e pela política
"caixa-prego" de conduzir eventos desse tipo, Porto Alegre
enfrenta alguns problemas para receber visitantes ilustres. Em primeiro
lugar, há problemas em acomodar o público em um lugar
que ofereça um mínimo de estrutura. No caso do evento,
ao contrário do profissionalismo impecável aplicado
na edição do Rio de Janeiro, a organização
local meteu mais de sete mil cabeças num galpão que
um dia foi uma fábrica de máquinas. O local, repito,
era uma fábrica e não há ali a menor possibilidade
de conciliar os objetivos do evento com a estrutura existente. Com
uma proliferação de som horripilante, o local ainda
tem colunas de metal que, para quem não está muito
metido no meio da platéia, posicionam-se exatamente na frente
do palco. Nesse sentido, o lance saiu bem ruim: som mastigado e
inúmeros obstáculos na frente de alguma parte do público.
Completando, nossa imprensa tem algumas dificuldades de lidar com
esses eventos. A divulgação, apontada para as massas,
apostou forte na presença dos Strokes, conhecidos por grande
parte do público por alguns hits de FM. Obviamente, não
soube muito bem como fazer com o Arcade Fire. O resultado só
poderia ser (assim como foi em São Paulo) um show dos Strokes
com a abertura duns caras aí.
Com a piazada a mil (muitos com visual
Strokes devidamente reproduzido), o evento arrecadou de fazocas
a manos a fim de mandar brasa nas menininhas. Um plus porto-alegrense,
que não vi no RJ, foi uma considerável área
VIP para onde nem ingressos haviam sido disponibilizados. Quer dizer,
alguns muito especiais tiveram privilégios que os mortais
que pagaram de R$ 40,00 a 60,00 não tiveram. Enxergavam melhor
o palco e tinham serviço de garçom. Coisas gaudérias.
Posto tudo isso, já dava para perceber que por mais que o
Arcade Fire suasse sangue no palco (o que não me surpreenderia),
o evento presenciado no Rio já tinha ganhado a medalha de
ouro, pelas condições corretas de estrutura e público.
Acústicos & Valvulados
tocou seu rock certinho, agradecendo por estar no TIM e de alguma
forma agradando bastante o público dos Strokes, já
que quem escuta Strokes regularmente aqui na capital gaúcha
certamente escuta muito A&V, graças às FMs locais.
Enquanto na etapa carioca houve alguma intenção de
disponibilizar artistas novos, em Porto Alegre optou-se pela surpresa
zero. Não fosse pelos canadenses que se apresentariam depois,
o público teria assistido a um evento sem um pingo sequer
de renovação, uma vez que A&V e Strokes estavam
na ponta da língua da gurizada.
O Arcade Fire entrou no palco com
a tarefa de se comunicar com a platéia gaúcha, o que
por si só já era uma parada dura. Ilustríssimos
desconhecidos, certamente reuniam na platéia meia-dúzia
de blogueiros (aos quais me incluo) que sabiam do valor que aquele
momento tinha para os prados gauchescos. A grande massa estava mesmo
nas pilhas para que o show dos Strokes começasse, o que podia
ser claramente percebido na camada de público que estava
atrás do burburinho: enquanto a banda tocava o horror no
palco, muitos ficavam olhando para as paredes. E falando em tocar
o horror, o show foi tão intenso quanto o do Rio, apenas
combalido por todas as forças malignas destacadas anteriormente.
Toda a intensidade da banda, o coral uníssono, os olhos fechados
pareceram mais uma vez autênticos e genuínos e, apenas
para não dar contra total, a turma mais à frente aos
poucos mostrou sinais de empolgação. Tudo foi mais
uma vez exercitado: Régine foi para a bateria, Richard e
Will encheram o palco de teatralidade, Win usou toda sua estatura
para centralizar um dos shows mais imperdíveis do rock. Deram
um bônus (a cover de "Storm Trooper", do Bruce Springsteen),
fizeram a vez com os locais ("Brazil" do Ary Barroso),
intercalaram novamente "Power Out" com "Rebellion
(Lies)", o momento mais arrepiante que uma banda já
produziu num palco. Will ainda tratou de finalizar com um golpe
certeiro, escalando as estruturas metálicas do galpão
com seu tambor a tiracolo, simbolizando a proposta diferenciada
e a entrega da banda em cima do palco. Reafirmei minha crença
na força suprema dessa banda que tantos admiradores arrebanhou
em tão pouco tempo justamente quando, ao contrário
de esperadas vaias e clamores pelos novaiorquinos, o público
assistiu e aplaudiu. Se na quarta-feira compraram o "Funeral",
bem, aí é outra coisa.
Com a chegada então do momento
esperado pela maioria, as gurias de menos de 1,70m de altura começaram
a cotovelar o alheio. Já escutei mais Strokes no passado
e confesso que a banda de forma alguma incomoda meus ouvidos. Sou
mais essa proposta de pop/rock do que os hip-hops que estão
por aí. A dificuldade toda foi adaptar a percepção
ajustada para o show de antes no show que estava começando.
No palco, os caras mandam seus hits, sem grandes inovações,
com o público respondendo em alto volume. Muita gente dançando,
refrões berrados à volta no mais famoso "portuinglês".
Sintetizando, a banda entrou com o jogo já resolvido, limitando-se
a trocar passes no meio campo. As faixas novas acabaram não
fazendo grandes diferenças, ainda mais com o som embolado
que se percebia e músicas como "Last Nite", "Reptilia"
e "Barely Legal" foram devidamente celebradas e meticulosamente
executadas. Um show de rock que acertou os anseios da maioria da
horda que estava no galpão, não chegando nem perto
do que a banda anterior propôs e efetuou, mas cumprindo com
seu papel.

Strokes
Com essa saraivada de boas bandas
tocando no Brasil, surgiu após o show o comentário
que Porto Alegre pretende desenvolver um local mais apropriado para
esses raros eventos, de forma até que eles não continuem
assim tão raros. Ganham todos se uma nova estrutura for disponibilizada.
Ainda assim, o TIM em Porto Alegre marcou uma noite onde uma grande
banda internacional e uma grande banda de verdade voltaram sua música
para uma platéia sedenta por shows desse patamar. Que a organização
fique atenta e aos poucos vá absorvendo um pouco da diferenciação
proposta pelos cariocas, investindo num ar-condicionado, num ambiente
específico e se possível se dando conta de que a presença
de uma banda como Arcade Fire aqui significa muito mais do que esses
shows de segunda linha que tentam nos enfiar goela abaixo.
Vicente Moschetti
fotos dos shows do RJ: Site
oficial do TimFestival 2005
foto do Strokes em Porto Alegre: Portal Terra
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