Naquela época
eu era suficientemente imaturo para desprezar uma obra-prima.
Dois anos depois, quando ainda vivia emergido num mundo
de pop, baladas melosas e Legião Urbana, leio na
saudosa Showbizz uma crítica elevando um álbum
do Beck à categoria de clássico. Posso falar
sem vergonha que mais me chamou atenção
aquele cãozinho saltando um obstáculo na
capa do que o próprio texto, mas me chamou a atenção.
Era Odelay nascendo na minha vida. Um dia por curiosidade
numa loja de discos resolvo ouví-lo, e o estrago
estava feito, nascia meu primeiro disco de rock alternativo.
Na contracapa do álbum diz Je suis
revolutionaire, suficientemente auto-explicativo para
o que Beck faz neste álbum. A entrada da primeira
faixa, Devil's Haircut já toma você covardemente
pelo que há de melhor no rock, barulho, um certo
caos, uma neurose pulsante, "Got a devil's haircut
in my mind", numa pegada meio blues, meio showgazing,
meio rock, cheia de barulhinhos, e barulhões, vozes
sintetizadas, e a voz do próprio Beck em microfone
aberto, aveludada, suave, mas cantando demências.
Isso, meu caro amigo, isso sim é sem volta. Eu
não precisei ouvir o resto.
O disco conta com a produção
dos tarimbados The Dust Brothers, especialistas em fundir
eletrônica e guitarras, sempre fazendo fusões
interessantes. As fusões de Odelay transcendem
o interessante, vão muito além disso, sem
chegar nunca próximo ao perigo de se repetir e
nem tampouco à chatice do típico disco experimental
para as massas. Odelay é concebido a partir de
bases simples, muito parecidas umas com as outras, porém
com arranjos e variacões tão geniais que
fazem com que cada cancão pareça ter saído
de um catálogo diferente. Tem rap, tem country,
hinduísmos, folk, indústrial, bossa. Tem
quase tudo, e tem sempre o mesmo, e convenhamos essa não
é uma formula muito fácil de aplicar.
Hotwax, a segunda cancão do disco
lembra Looser (vide Mellow Gold), um rap com violões
e barulhinhos espertos com refrão em espanhol:
Yo soy un disco quebrado, yo tengo chicle en el cerebro.
Surge uma gaitinha que deveria mudar tudo na canção,
mas tudo continua assim, esperto, e termina num diálogo
onde Beck é categórico e se auto proclama:
"who are you?","I'm the enchanting wizard
of rhythm.", "why did you come here?",
"I came here to tell you about the rhythms of the
universe....". Um berro, vozes baixas no estéreo,
batidinhas, ruídos, você tem uma nova cancão,
um country, tranquilo, gostoso, só falta o cavalo
e o chapéu, Lord Only Knows.
Um dos hits do disco é The New Pollution, uma das
remodelacões que Tomorrow Never Knows dos Beatles
recebe nos anos 90. Funcional para pistas de dança,
essa canção aparenta vir completamente entorpecida,
desde a letra até o ritmo hipnótico e um
pouco malemolente. Derelict traz cítaras, o vocal
sintetizado e um clima completamente hindu, você
pode até imaginar o moço vestido como o
Gandhi. Na minha opinião não é uma
faixa brilhante, porém ela é muito esclarecedora
de que os Beatles e sua trajetória, principalmente
o álbum Revolver, atuam na elaboração
de Odelay.
Novacane pode ser ensurdecedora, dependendo
da sensibilidade do ouvinte, irritante talvez, mas eu
prefiro dizer claustrofóbica, é a canção
mais claustrofóbica e barulhenta do disco. Jack-Ass
é folk, folk doce, suave com fortes referências
a Bob Dylan, cheia de barulhinhos, pegada leve, porém
irônica até o dedão do pé.
O grande hit do disco foi mesmo Where It's At, uma mescla
de rap, soul e jazz, altamente dançável,
tão representativa como o Beck, tanto que ambos
foram parar na tela do Futurama, onde aparece o beckcionário,
de onde teria vindo o verbete Odelay, inexistente na língua
inglesa. Minus é new wave, enfurecida e explosiva,
forte e contundente. Sissineck é o contrário,
um alt-country leve, risonho e altamente assobiável.
Punk, blues, country, folk, rap, soul,
jazz, rock, hindí, tudo entra na salada de Odelay,
até Readymade traz um sampler de Desafinado, e
High 5! Uma cuíca sambando em meio a um caos sonoro
que pode ser um rap, um rock porra-loca ou um talk-show.
Ramshckle quebra o clima, é a mais soturna de todas,
tristonha e solitária, ilhada entre High 5! e Discobox,
que é uma espécie de ensaio final. Talvez
no fim do disco você possa rever seus conceitos
de criatividade...
Este disco passou a definir o que
um disco experimental representa no rock, é incessantemente
copiado sem ter tido até hoje algum que chegue
perto, além de que certamente será ouvido
por um bom tempo com aquele assombro com que todo clássico
é ouvido, por ter transcendido de tal forma o próprio
tempo. Um clássico absoluto e revolucionário
dos anos 90 q ue nem o próprio Beck parece conseguir
repetir, e que me preparou para muitos outros que vieram
depois daquele dia naquela loja discos.