"In a sea-change, nothing's safe
Strange waves push us every way"
BECK, <Little One,2002>
"Everything passes, everything changes
Just do what you think you should do"
DYLAN, <To Ramona, 1964>
A primeira sensação que
tive ao dar o primeiro play neste Sea Change, mais recente
álbum de estúdio do Beck, foi de estranheza:
não era exatamente essa pessoa que eu estava esperando
encontrar. O que não é necessariamente uma
má coisa e não prova nada contra a obra
em si. A capacidade de nos surpreender positivamente com
o aparecimento de uma persona diversa da que antes conhecíamos
é uma qualidade restrita a alguns poucos artistas
que tem a coragem de ir em frente e ir além. É
preciso ousadia pra tomar estradas radicalmente diferentes
das do passado e mover-se em direções novas
e inexploradas, deixando de ser uma imitação
do passado. Temos exemplos desse tipo de radical modificação
musical e comportamental no Radiohead, respondendo aos
pedidos por OK Computer 2 com o estranhíssimo experimento
pós-punk + tecno experimental de Kid A, ou em Bob
Dylan, mandando as guitarras elétricas de Bringin’
It All Back Home na orelha dos puritanos folk após
4 discos bem retrô, ou em David Bowie e suas eternas
mutações. Beck, artista de grandeza comparável,
nunca teve medo da mudança, e seu último
álbum é mais um passo em direção
a um campo relativamente inexplorado por ele. Louvável
metamorfose.
Sea Change parece representar para a carreira
dele algo similar ao que representou o Nashville Skyline
para a de Dylan: um retorno à simplicidade perdida.
Vejamos: O sr. Zimmermann gravou no meio dos anos 60 sua
fenomenal trilogia elétrica - Bringing It All Back
Home, Highway 61 Revisited e Blonde On Blonde, três
obras-primas fuderosas na história da música
pop - onde misturava freneticamente estilos “arcaicos”
(o folk e o blues acústico de Woody Guthrie e Leadbelly)
com as novidades efervescentes (o rock and roll com guitarra
elétrica), procurando diferentes meios pra declamar
suas poesias. Criava naqueles tempos letras bastante complexas,
que flertavam com o surrealismo, com o dadaísmo
e com a Geração Beat (Allen Ginsberg caiu
de amores); enfiava a guitarrona no que antes era só
folkzinho à base de violão e gaita; compunha
ambiciosos épicos de mais de 10 minutos de duração
("Desolation Row" e "Sad-Eyed Lady Of The
Lowlands"); era obscuro e misterioso nas raras entrevistas
que dava. Foi em 1966 que lançou seu primeiro livro
de prosa poética, Tarântula, um jorro monstruoso
de letras delirantes de hermetismo absolutamente impenetrável
(alguém tem a pretensão de ter entendido
esse livro?). Naqueles tempos, Bob estava a fim de ser
Rimbaud. Suas ambições subiam aos céus
e ele gastava todos os seus esforços na tentativa
- na maioria das vezes muito bem-sucedida - de ser espertalhão
e genioso.
A metamorfose parece ter acontecido após
seu acidente de moto em 1967 (até hoje muito mal
explicado) e seu flerte com o country no John Wesley Harding.
Dylan retornou em 1969 bastante modificado com essa estranha
pérola que é o Nashville Skyline. Como se
toda a sua ambição tivesse se escoado, como
se o poeta vanguardista tivesse sossegado e dado lugar
a um simplório cantor caipira, Dylan voltava com
um álbum com 28 minutos de um folk/country simplérrimo
e pouquíssimo pretensioso. É como se não
tivesse mais nada a provar pra ninguém e estivesse
livre para ser simples em paz, cantando suas canções
de amor com voz suave e sincera.
O paralelo com Beck me parece claro. Nascido
em 1970 em Los Angeles, Beck Hansen já recebeu
de muitos membros da imprensa o apelido "o novo Bob
Dylan" - e, neste caso, não me parece ser
somente sensacionalismo fomentando o hype. Quando seu
mega-hit "Loser" estourou nas paradas em 1994,
se transformando numa das músicas-monumento da
música pop nos anos 90 (com aquele que é
um dos mais célebres refrões da década),
e seu disco de estréia, o caleidoscópico
Mellow Gold, foi lançado, a crítica não
pôde evitar as comparações de Hansen
com Zimmermann.
Beck aparecia como um poeta doidão,
consumidor obsessivo de cultura pop, legítimo filho
da Era Digital, disparando referências, jogos de
palavras e associações livres aos borbotões
em suas letras. Musicalmente, movia-se num campo musical
ainda mais vasto do que o Dylan da Trilogia Elétrica:
tacava funk, folk, hip hop, indie lo-fi, música
brasileira, country e psicodelia no liquidificador e saía
com um mosaico de estilos amalgamados. Com o lançamento
do clássico Odelay, em 1996, quase por unanimidade
tido pela crítica como um dos 10 melhores álbuns
da década, se tornou efetivamente um dos raros
nomes a ter os louvores da crítica lado a lado
com a consagração popular (justamente como
Bob). Espertalhão e genioso, disparando letras
que para muitos eram impenetráveis, carregadas
com simbolismo e word-plays, Beck era o mais próximo
de Dylan que os anos 90 viram nascer.
Sea Change, sexto álbum de sua
carreira (não contando a coleta de gravações
lo-fi Stereopathetic Soul Manure), traz consideráveis
modificações na persona de Beck que aparecia
em Mellow Gold, Odelay e Midnight Vultures. Dentre os
álbuns já lançados por ele, o que
mais se irmana à esse Sea Change é o Mutations,
de 1998: os dois são álbuns mais na manha,
que se movimentam num ambiente folk tranquilão,
e ambos foram produzidos por Nigel Godrich (produtor do
Radiohead de OK Computer pra frente e atualmente um dos
maiores nomes do planeta em matéria de produção).
Parece sintomático que ambos tragam em seus respectivos
títulos referências à mudança:
eles representam uma certa metamorfose beckiana em relação
ao seu passado, uma invasão de um território
novo e inexplorado, um aparecimento dum Beck diferente
dos anteriores. O epíteto "camaleão
do rock", sempre tacado pra cima de Bowie, não
cai nada mal no próprio Beck.
Sea Change é o mais confessional
dos álbuns já lançados pelo cara.
Ele parece finalmente se desinteressar pelos tours de
force por dezenas de estilos musicais, pulando de galho
em galho na floresta dos gêneros sônicos,
e se rende à simplicidade folk. É como se
ele agora quisesse se fixar em um lugar familiar que possa
chamar de um lar. Em Mellow Gold, Odelay e Midnight Vultures,
com uma certa obsessão pela versatilidade (como
o Dylan da Trilogia Elétrica), Beck criara discos
relativamente fragmentários e heterogêneos
- uma deliciosa bagunça formada a partir dos vômitos
de um junkie de cultura pop em processo de antropofagia.
Em Sea Change um outro Beck se apresenta,
mais envelhecido, mais amadurecido, com a obra sua que
apresenta o mais alto grau de homogeneidade até
hoje. É um Álbum no sentido mais profundo
da palavra: não somente um amontoado de canções,
mas uma série de músicas que constrói
uma certa unidade sonora e temática. Baladeiro,
sereno, melancólico, Beck abandona o clima festeiro
de antigamente e cede lugar a uma travessia por sons mais
tranquilões e tristonhos. Os violões dominam
o ambiente. A cantoria é serena, sem malabarismos
vocais, sem passeios nos domínios do rap ou do
funk. É a voz de um trovador folk à maneira
de Dylan, Van Morrison, Townes Van Zandt. "Round
The Bend", com seus vocais sussurados, parecendo
um cântico de um monge em meditação
(forcei a barra?), lembra Nick Drake. As orquestrações
que tomam conta de certas faixas (notavelmente "Paper
Tiger" e "Lonesome Tears") também
trazem à mente a junção de folk com
orquestra no Bryter Layter, clássico de Drake.
A poesia de Beck, até hoje muito
subestimada e incompreendida, se torna límpida
em Sea Change: com palavras simples, sem cinismo, sem
ironia, sem joguinhos arbitrários com as associações,
ele dá vazão a seu coração
com uma sinceridade nunca antes vista em sua carreira.
Beck nunca esteve tão sentimental. Sem querer exagerar
na fofocagem sobre a vida das estrelas, mas sabendo que
essa informação é importante pra
compreensão da obra (certas expressões artísticas
são incompreensíveis pra quem não
conhece a biografia do artista), é bom lembrar
que Beck manisfestamente compôs o disco após
terminar um relacionamento de 9 anos com sua namorada.
As mágoas de seu coraçãozinho partido
espalham-se pelo álbum, cheio de referências
à perda de seu amor, mas sem nunca cair no melodrama.
Tem crítico por aí dizendo (outro paralelo
possível) que Sea Change é uma espécie
de Blood On The Tracks beckiano, uma vez que o clássico
dylaniano de 1975 também foi composto após
o fim de um relacionamento duradouro (o casamento com
Sara).
A Mudança parece ser o tema central
dentro de Sea Change, como um porto onde Beck sempre volta
a atracar. Esse é seu tormento. Como um discípulo
de Heráclito, ele vai dizendo várias vezes
pelo disco: tudo flui. Mas dizer daí que a consequência
disso é que "nunca se banha duas vezes no
mesmo rio" é se ater somente ao lado otimista
da coisa. É lendária a fama que tinha Heráclito
de ser um sujeito extremamente triste, em contraponto
com o também lendário sorriso de Demócrito.
Beck, que em sua carreira anterior parecia se sentir extremamente
à vontade com as transmutações (um
mutante feliz à la Demócrito), chega em
Sea Change com cara de Heráclito. Vai descrever
as desgraças da metamorfose, o nosso cruel arrastamento
nas correntes do tempo, nossa brutal modificação
de sentimentos e de humor, a angustiante efemeridade de
tudo o que é humano. É um disco sobre o
Amor, é claro, mas sobre o amor inserido dentro
da metamorfose: se tudo flui, também fluem as pessoas
e o amor e a afeição que temos por elas.
Na linda "Already Dead", canta:
Time wears away
All the pleasures of the day
All the treasures you could hold
Days turn to sand
Losing strenght in every hand
They can't hold you anymore
Already dead to me now
cause it feels like i'm watching something dying....
A experiência do devir se torna
a experiência da morte. Estamos escoando ladeira
abaixo numa corrente de impermanência. Assistir
o passar do tempo é como observar a lenta caminhada
de um mecanismo de destruição. É
como se ele dissesse que a morte não é um
momento, mas um processo. É a própria vida,
talvez. Todos os prazeres, todos os amores, todos os tesouros,
todas as pessoas, estão sendo arrastadas pelo fluxo
universal em direção à dissolução.
O tempo destrói tudo.
"Vi o amor que você tinha
se transformando em ódio / E tive que agir como
se nem me importasse", canta ele em "End Of
The Day", no que pode parecer uma descoberta vulgar
(quem de nós não sabe que podemos odiar
quem antes amávamos?), mas que é talvez
a tese (e o tormento) principal de Beck nesse disco. "Não
é nada que eu não tenha visto antes",
diz ele na mesma música, "mas ainda me assassina
como fazia antes". O fato de ser uma constatação
ordinária não faz com que seja menos dolorosa.
O amor - que Beck sabe bem que não tem nada de
eterno, apesar do que dizem as novelas mexicanas, os conselheiros
matrimoniais e os enredos hollywoodianos - é tratado
como mais uma das inúmeras coisas que entram no
turbilhão do devir. As pessoas mudam, com elas
os sentimentos, e fica-se com essa bolha frágil,
facilmente quebrável, sempre mutante, sempre efêmera,
o amor. Na singela "Lonesome Tears", canta ele:
How could this love, ever-turning,
Never turn its eye on me?
How could this love, ever-changing,
Never change the way I feel?
Não há nada seguro. Nada
verdadeiramente perene. "In the sea-change, nothing
is safe / Strange waves push us every day", canta
em "Little One". Como Dylan antes dele (só
pensar nos versos de "To Ramona" ou em toda
"The Times Are-A Changin'"), Beck descobre-se
como uma existência metamórfica num mundo
metamórfico, e, apesar da angústia, aceita
a realidade do processo. Não é cara de se
agarrar perpetuamente a um só personagem. É
um camaleão, e é bom que seja. Não
é o tipo de artista que fica preso a seu passado,
a um certo personagem que inventou para si mesmo. Beck
não tem medo de mudar. Sabe bem que inserido no
devir do mundo há também o devir do eu,
e talvez por isso mesmo o "eu" não existe,
como titio Buda já explicou. Não há
um Beck; há vários. Cada pessoa é
uma multidão. Eis porque é preciso "aprender
a deixar o passado pra trás" ("Guess
I'm Doing Fine") e abandonar "certos dias que
as lágrimas não conseguem apagar" ("Lonesome
Tears"). Não há solução:
a cada instante, não somos mais exatamente o que
éramos no instante anterior, e não há
sabedoria em se debruçar no passado e agarrar-se
ao "eu perdido".
"But we don't have to worry
/ Life goes where it does", canta ele em "Round
The Bend", como se dissesse que a sabedoria - sempre
tão difícil - está em abandonar-se
à corrente... É aquele papo Raul: por que
não ser uma metamorfose ambulante, ao invés
de se apegar a uma "personalidade imutável"
que seria apenas uma impostura, apenas uma ilusão,
apenas uma atuação? É essa talvez
uma das sugestões da sabedoria beckiana em Sea
Change: ao invés de lutar contra o fluxo, ao invés
de insistir em ser um bote contra a corrente, por que
não simplesmente soltar-se e deixar-se ir?