With The Lights Out
No momento em que Kurt Cobain resolveu
explodir os miolos, em 1994, o Nirvana automaticamente entrou para
a posteridade do rock. Acima das angústias que envolveram
o fim do conturbado líder, o caráter messiânico
que a banda recebeu potencializou o faro dos homens de negócios
da gravadora Geffen, pronta para capitalizar em cima de uma banda
que materializou o lema "viva rápido, morra jovem".
Para a surpresa de muitos, os curtos quatro anos em que o Nirvana
sobreviveu no mainstream não representavam o acervo registrado
desde 1987, quando surgiram em Aberdeen, WA. A Geffen levantou um
conjunto violento de gravações, das mais puras às
mais combalidas, que poderiam preencher um bom número de
lançamentos nos anos que estariam por vir. Contudo, a viúva
de Kurt, Courtney Love, entrou em conflito com Krist Novoselich
e David Grohl, membros remanescentes do Nirvana, quanto à
autorização do lançamento do material, colocando
a idéia em suspensão indeterminada. A Geffen então
se contentou com a edição de um disco ao vivo e um
VHS, lacrando o acesso ao que se transformou numa relíquia
esperadíssima pelos fãs: uma caixa com as raridades
da banda mais representativa dos anos 90.
Nesse meio tempo, a base de fãs foi gradualmente abastecida
de um conjunto das raridades que a Geffen mantinha em seus porões,
por meio da indústria pirata. Assim, o interesse pela caixa
passava a ser contestado. Eis que problemas financeiros atingiram
a viúva de Cobain e a mudança de planos se tornou
necessária. A Geffen recebeu a autorização
para desenvolver o projeto, que iniciou em 2002 com o famigerado
lançamento de uma coletânea. A inclusão de uma
faixa inédita, "You Know You're Right", dava o
caráter relevante ao disco e alçava expectativas em
relação ao lançamento da esperada caixa, abortada
anos atrás. O martírio chegaria ao fim em meados de
2004, quando a Geffen confirmou sua edição, entitulada
"With The Lights Out", datada para 23 de novembro do mesmo
ano. O possível desinteresse de fãs abastecidos de
dezenas de bootlegs, compilados no decorrer dos anos em que o assunto
ficara suspenso, não se confirmou e a internet recebeu uma
leva de comentários e expectativas positivas de fãs,
finalmente aliviados em saber que poderiam adentrar suas lojas preferidas
para comprar o tão esperado cálice sagrado. A divulgação
das faixas oficiais que integrariam o lançamento foi até
contestada por muitos, porém, a mística e a antecipação
em torno do produto final confirmou que o Nirvana e seus fãs
estavam finalmente recebendo a merecida atenção.
Os fãs brasileiros, é
claro, não ficaram isentos de tal expectativa. Banda estrangeira,
muito popular no país, privilegiou o Brasil ao tocar em um
festival de 1993, chegando a antecipar algumas faixas de seu esperado
"In Utero" em um estúdio do Rio de Janeiro, no
momento em que representavam o auge que uma banda de rock poderia
alcançar. Difícil comparecer hoje em um show de rock
brasileiro sem topar com uma garotada ornamentando camisetas da
finada banda. Tendo todos os discos do Nirvana editados no país,
o fã local esperava ansiosamente o anúncio de que
"With The Lights Out" estaria à sua disposição
nas lojas brasileiras, e até perdoaria a Universal, representante
da Geffen no Brasil, por atrasar a disponibilidade da caixa em relação
ao que estava acontecendo no exterior, como habitualmente faz. O
que importava é que, pelo menos até o natal, a caixa
seria nossa. Entretanto, uma semana pós sua edição
no exterior, a mídia local veicularia aquilo que nenhum fã
esperava: a Universal abandonou a idéia de lançar
a caixa, por entender que seria muito caro produzi-la em terreno
local ou mesmo importá-la para suprir as lojas de discos
brasileiras.
Tal decisão implica
em momentos de perplexidade: o mercado brasileiro de DVDs, por exemplo,
vem oferecendo há alguns anos itens de excelente acabamento,
que em algum ponto se assemelham com o novo produto do Nirvana.
Caixas de seriados como Friends e 24H saem com a mesma configuração
que a das importadas. A caixa do Twin Peaks, por sua vez, tem toda
a qualidade do produto americano e ainda oferece o piloto da série,
ao contrário do que aconteceu com os ianques. Quem tem a
caixa "Anthology", dos Beatles, pôde comprovar que
a EMI não se intimidou ao colocar um produto de qualidade
nas prateleiras cobrando mais de R$200,00 pelo mesmo.
Pergunta-se: já que as gravadoras põem a culpa na
pirataria, por que não aproveitar a chance de finalmente
usar um produto que se sustenta na qualidade e na embalagem para
capitalizar? Em caso de CDs convencionais, o argumento é
que o usuário abriu mão dos encartes e da qualidade
para comprar discos por R$5,00 ou mesmo gravá-los em casa.
Por esse motivo, a saída é minguar os lançamentos
e arriscar quase nada num mercado arrasado, priorizando os artistas
popularescos ou preguiçosamente lançando álbuns
que atingiram sucesso no exterior (Keane, Jet e o hip-hop são
bons exemplos). E em relação aos DVDs, usam uma tática
reversa, baseadas na idéia de um público comprador
que se dispõe a bancar mais de R$200,00 para eternizar uma
temporada de determinada série ou de seu mega show favorito
na prateleira. E seguem editando, sem sinais de temor, caixas luxuosas
de sitcoms e de artistas renomados.
Agora, como entender a política da Universal em relação
a "With The Lights Out"? Item claramente dedicado a fãs
de carterinha do Nirvana, notabilizado por incluir versões
inusitadas registradas até em solo brasileiro. Uma banda
finada que move correntes na internet e alcança as mais variadas
gerações não teria o mesmo nicho de exploração
que tem a série Friends? Não teríamos no país
um conjunto suficiente de pessoas interessadas no conjunto de b-sides,
no DVD especial que acompanha a caixa e mesmo no ícone que
enobrece a existência da banda de rock mais popular dos anos
90? Entretanto, aparentemente temos um número suficiente
de pessoas dispostas a pagar R$ 100,00 por uma temporada de Friends,
com direito à caixa de primeira categoria e até itens
promocionais (camisetas, cálices de champagne, entre outros).
Nem mesmo a coincidência com a temporada de festejos natalinos,
notória por impulsionar as vendas e permitir o oferecimento
de produtos que nem sempre podem existir no decorrer do ano, sensibilizou
o departamento comercial da gravadora no. 1 do Brasil.
Negar a edição nacional de "With The Lights Out"
com todas as características em que foi desenvolvida é
assinar a afirmação de que o mercado fonográfico
brasileiro foi à falência e não mais tem condições
de reagir aos efeitos de sua política auto-destruidora. É
ignorar um item defendido pelos próprios membros remanescentes
da banda, é mais uma vez marginalizar o público brasileiro,
disposto a absorver o item por um valor justo, sem ter de recorrer
à caríssima importação. É mostrar
a total falta de sintonia entre empresa e mercado. Mas infelizmente
os fãs brasileiros do Nirvana, que acompanharam o desenrolar
do assunto da caixa no decorrer dos últimos anos pela internet,
que vibraram com a confirmação do lançamento,
certos de que teriam o apoio da gravadora Universal, estão
fadados a trabalhar horas extras para tentar adquirir o precioso
item de natal. Mas saibam, gravadoras, que em tempos de internet,
o consumidor que compra caixas de DVDs têm acesso à
computadores rápidos, têm acesso à informação.
Eles não mais dependem de uma matéria no Fantástico
ou de uma divulgação no Faustão para descobrir
que determinado disco está nas prateleiras do planeta. E
se ele não tiver condições de importar "With
The Lights Out", não será por causa de sua não-edição
nacional que ele vai se privar de escutar o conteúdo do item
ou mesmo de assistir às imagens do esperado DVD. Ainda que
com uma pequena mágoa, ele estará escutando "Smells
Like Teen Spirit" com o sax de Flea, dos Chili Peppers, todos
sabem muito bem como. Pois ele sabe que às vezes as coisas
são assim e que o mundo continua girando.
Vicente Moschetti, 26 anos, é vítima
incurável da voracidade comercial das gravadoras.
05/12/2004
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