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Música e evolução,
parte 1: Trail of Dead
Quando se diz que uma banda "evoluiu"
ou "desenvolveu" seu som ao longo de sua carreira,
pode-se basicamente estar falando de dois tipos distintos
de "evolução". O primeiro tipo é
aquele em que um grupo muda sensivelmente a sua sonoridade
e/ou estilo, seja por adequação à alguma
tendência, vontade instintiva de seus componentes ou
puro exercício de estilo. Outro tipo de evolução,
menos perceptiva, mas que não deixa de ser evolução,
é aquela em que uma banda possui um estilo bem definido,
e constrói seu progresso dentro deste domínio.
O tom aqui é aguçar suas virtudes, fazer mais
do mesmo, mas cada vez melhor. Os motivos para uma banda construir
sua carreira seguindo um ou outro não vêm ao
caso aqui: já rendem muita briga e discussão
em fóruns e listas de discussão por aí
(principalmente nas listas e fóruns do Metallica).
Podemos citar casos clássicos
de bandas para cada um dos dois tipos: o Smashing Pumpkins,
que gravou o garageiro e barulhento "Gish" e 7 anos
depois estava gravando o eletrônico e delicado "Adore",
é das bandas que nunca teve medo de mudar, inovar,
seguir aquilo que seu líder Billy Corgan quisesse,
independente do que achariam crítica e público,
e ser extremamente bem sucedida nisso. Já o Ramones
passou os seus 20 anos de carreira praticamente gravando discos
iguais, mas sempre muito legais (tá certo que o grupo
amaciou um pouco sim o seu som ali na época de “Brain
Drain” e “Mondo Bizarro”, mas nada que possa sugerir que a
banda "mudou"). Sem entrar no mérito de qual
dessas duas é a mais positiva forma de crescer (particularmente,
acredito que ambas são válidas), atualmente
uma das banda que mais evidencia a segunda forma de evolução
citada é o And You Will Know Us By The Trail Of Dead,
e encontramos em seus três primeiros discos o exemplo
ilustrativo perfeito para isso. O conjunto texano tem na dupla
peso/melodia o seu norte, mas está sempre evoluindo
e tornando seu som cada vez mais interessante.
Podemos então analisar a discografia
do Trail of Dead sob essa ótica. Claro que a carreira
da banda está, salvo qualquer acontecimento inesperado,
começando apenas, e eles podem perfeitamente vir a
mudar essa característica. Mas o que os três
discos lançados até agora (a saber: “And You
Will Know Us By The Trail of Dead”, de 1998, “Madonna”, de
1999, e “Source Tags & Codes”, de 2002) sugerem a princípio,
é que o Trail of Dead realmente pretende apostar nesse
estilo, que não é original e tampouco incomum,
mas que eles levaram ao limite, extrapolando tudo que já
foi feito antes, levando o casamento entre o peso e a melodia
ao seu cume mais alto e grandioso. E olha que isso tudo em
apenas três discos...
Antes de desenvolver um pouco mais
essa análise, há de se registrar que a banda não
segue cegamente a fórmula supracitada, sem adicionar
qualquer traço pessoal. Apesar dos elementos chaves do
som do Trail of Dead serem o peso e a melodia, a banda inseriu
nesse contexto elementos pessoais sim, o que confere ao seu
som ainda mais brilho e torna singular a sua ainda curta obra.
E quais são esses elementos? Enquanto nas bandas de Seattle
(que foram as responsáveis por globalizar essa proposta)
o peso e a melodia eram texturizados através de acordes
simples e minimalismo instrumental quase sempre, o Trail of
Dead usa outro caminho para transformar suas idéias em
música: suporte técnico bem desenvolvido e trabalhado
e faro apurado para melodias e desenvolvimentos que ficam a
um passo do intrincado. A banda foge do fácil e do convencional,
e pode até soar pretenciosa por isso, mas seus discos
são de uma riqueza e força impressionantes, o
que acaba sobrepondo toda e qualquer pretensão. Claro
que não estamos falando aqui de uma banda fria que só
trabalha com o cérebro, sem utilizar o coração,
tal qual estas que pipocam no universo metal e até já
ganharam um rótulo próprio, o prog-metal (até
gosto do Dream Theater, mas a maioria delas é insuportavelmente
chata e desprovida de emoção); o Trail of Dead
sabe usar este expediente com perfeita parcimônia e cálculo,
aliando-o a um feeling melódico emocionante e visceral.
Funciona como o alicerce de sua sonoridade, sobre onde está
erguido o que realmente é significativo em sua música,
mas como todo alicerce é fundamental, acaba sendo também
um diferencial do Trail of Dead ante qualquer outra banda que
explore a dobradinha peso/melodia (e não são poucas).
E o que chama mais a atenção
realmente no conjunto da obra, são os extremos que
o Trail of Dead aplica sem pudor às suas características
seminais: quando a banda quer peso, eles fazem o que ninguém
até hoje tinha feito dentro da vertente alternativa
do rock: criam camadas e camadas de guitarra e cozinha descomunais
(quem já assisitiu a uma apresentação
da banda garante que isso rende os shows mais desconcertantes
já vistos). E quando se fala de melodia, o Trail
of Dead oferece em seus discos composições
no sentido mais fascinante da palavra, musicalidade em seu
estado mais tocante. Mas esses dois lados, sozinhos, não
são nada muito especial, e o grande mérito
da banda é fazer o mais difícil: usar os dois
juntos de maneira coesa, fundi-los, fazer um escravo do
outro e vice-versa, sempre com muita personalidade e habilidade,
desnorteando quem os ouve com atenção.
...Trail of Dead, de 1998 |
Vamos
então analisar a transição entre
os discos e a evolução da música
do Trail of Dead. O primeiro álbum, auto-intitulado,
é o mais violento e alucinado, o mais rústico
e assombrado. Já era evidente a sensibilidade
da banda para a composição, o talento
para criar excelentes melodias, e o impulso de botar
sobre tudo isso a roupagem do caos. |
Mas como é de se esperar de um disco de estréia,
o que sobressai são as microfonias, a fúria
da cozinha, a guitarra imponente e o vocal incansável
de Jason Reece, tudo secamente em primeiro plano. É
o que costuma acontecer com o debut de um conjunto, dado que
ele ainda está adquirindo técnica, se ambientando
e conhecendo um estúdio e suas possibilidades e flexibilizando
seus gostos e também limites, já que raramente
logo de cara já existe dinheiro, tecnologia, tempo
e profissionais ao seu dispor suficientes para que o grupo
traduza em um álbum o que realmente aspira. Mesmo porque
raramente isso já está bem definido na cabeça
dos músicos. Nesse sentido, até que o Trail
of Dead se saiu muito bem e apresentou em seu álbum
de estréia uma maturidade vibrante e contundente: apesar
do que foi dito acima, trata-se de um disco surpreendente,
que traz ótimas faixas como "Richter Scale Madness",
"Gargoyle Waiting" e "When We Begin To Steal"
escancarando as portas do mundo para o Trail of Dead. E o
mundo (ah, antes fosse, hehe! Na real eu quero dizer o pequeno
círculo alternativo) ficou boquiaberto com aquela banda
que toca sons grandiosos e densos, faz a guitarra explodir
sem piedade em nossos tímpanos, e imprime nessas muralhas
sonoras doses colossais de melodia. A banda se saiu muito
bem, mas ainda é tudo bastante primário e ríspido.
Fascinante, mas pode ser melhor...
Madonna, de 1999 |
E foi:
"Madonna" veio logo a seguir e o passo foi
enorme, dentro, claro, de sua proposta. Com o ganho
de respeito imediato por parte do público e crítica
alternativa, a banda foi premiada com condições
melhores para gravar seu segundo álbum. Junto
disso, veio também um pouco mais de maturidade
e refinamento, e o resultado é um disco ainda
mais incrível do que o primeiro. |
“Madonna” é um pouco menos imponente e
sombrio do que seu antecessor, possui canções
mais curtas e diversificadas. O Trail of Dead segue sua fórmula
de maneira um pouco mais acessível, limpa e equilibrada.
Com o ganho de qualidade de produção, a banda
aproveita e aposta um pouco mais em passagens atmosféricas,
que na maiorias das vezes servem somente como introdução
para um momento posterior de agressão. Discaço,
do início ao fim! "Mistakes and Regrets" é
impressionante, "Clair de Lune" e "Mark David
Chapman" mostram que a banda não perde a destreza
quando está mais tranquila e descompromissada, enquanto
que "Totally Natural" mostra que ela fica verdadeiramente
à vontade quando está livre para tocar alto, pesado
e nervosamente. E por fim, as duas últimas faixas são
a essência do Trail of Dead e tudo que foi dito acima:
"A Perfect Teenhold" e "Sigh Your Children"
são extâses de calmaria e de tempestade, de peso
ensurdecedor e de beleza melódica (qual faixa é
a responsável por o que? Ouça e descubra!). A
identidade estava definida e o Trail começava a ganhar
a atenção que merece. O caminho estava pavimentado
para construirem a sua grande obra até o momento.
"Source Tags & Codes", o terceiro
disco, é indescritível. Apesar de ser recente,
creio que já o ouvi algumas centenas de vezes, e cada
vez mais sei que não conseguirei escrever um texto que
dê as dimensões exatas do que ele desperta em mim
(tanto é que confesso que o meu objetivo inicial era
tentar escrever um review sobre esse disco, mas já sabendo
do inevitável fracasso - meu maior crítico sou
sempre eu mesmo, hehe - acabei escrevendo esse texto, aproveitando
assim e estreando finalmente minha coluna!).
Source Tags and Codes, de 2002 |
É
uma obra capaz de mudar percepções, é
apaixonante, intensa, impetuosa, épica, rock ‘n’
roll de muita fibra, feeling e talento. De sua sequência
de músicas jorram intrumental impecável
e sentimento palpitante, e sem misericórdia e nem
humildade, “Source Tags & Codes” faz muitos dos nossos
discos preferidos parecerem obras infantis. |
Ainda mais melodioso do que seus antecessores,
alternando de maneira mais entrosada e frequente os momentos
pesados com os calmos e viajantes, o grupo levou sua proposta
ao limite e talvez tenha até o ultrapassado. Segue um
pequeno faixa-faixa desordenado (desconsiderando as ótimas
vinhetas que a banda colocou entre algumas músicas):
“It Was There That I Saw You” é precisa e apresenta ao
ouvinte o instrumental devastador e afiadíssimo do Trail
of Dead; "Homage" é a faixa mais rasgada e
furiosa que a banda já gravou; "Heart in the Hand
of the Matter" é suntuosamente deslumbrante; “Days
of Being Wild” relembra o espírito do primeiro disco
com seu refrão punk-rock e andamento virulento; “Monsoon”
mostra que os caras da banda certamente ouviram muito Sonic
Youth em sua infância e souberam converter essa influência
em inspiração; “Relative Ways” e “Baudelaire”
são vigorosas e cheias de riffs fascinantes e “How Near
How Far” e “Another Morning Stoner” são verdadeiros tours
de force de sangue, suor e lágrimas, de feelings exacerbados
e derramados a cada virada de bateria e a cada palhetada (definitivamente,
é o trabalho de guitarras mais perfeito que eu já
ouvi). De quebra, o disco abre e fecha de maneira clássica:
a intro “Invocation” é levada por um piano belo e comovente,
e após a última faixa, um pequeno concerto de
ópera dá um tom austero aos segundos finais do
disco. Mas deixei para comentar no fim o grande destaque: a
faixa que dá o título ao álbum, e a última
deste, é daquelas músicas difíceis de se
aplicar algum adjetivo. Com seu andamento cativante levado pela
guitarra (sempre ela) e pontuado por um piano prosaico, e sua
letra bucólica que fala de saudade nostálgica
de um passado onde tudo era diferente, perplexidade com a vida
atual que tomou rumos tão diferentes do imaginado e incerteza
quanto ao que está por vir ainda, esta música
serve para selar definitivamente o tom de obra-prima que impera
em “Source Tags & Codes”.
Três discos sólidos e brilhantes,
que formam uma pequena mas incrivelmente coesa discografia,
é o que o Trail of Dead nos apresentou até aqui,
e este material ilustra perfeitamente o segundo tipo de evolução
que eu apresentei no começo desse texto. A banda cresceu
e aprimorou-se, aparando arestas e alguns exageros presentes
no primeiro disco, lapidando suas virtudes e características
próprias e aprendendo a lidar melhor com sua inspiração,
o que fica evidente no crescente de qualidade que ocorreu nos
três lançamentos até aqui. É claro
que um ou outro aspecto mudou: na verdade, é bem perceptível,
comparando o primeiro e o terceiro disco, que a banda passou
a direcionar mais o clima de suas músicas para o emotivo
em “Source Tags & Codes”, ao invés do clima abissal
que permeia “And You Wil Know Us By The Trail of Dead”. Mas
o estilo e a proposta são os mesmos, as linhas condutoras
de sua arte continuaram sendo aquelas que o Trail of Dead apresentou
desde seu princípio, e aparentemente, seguirá
utilizando.
ops, esse disco é de outra
banda... |
Na segunda
parte deste texto, o foco vai ser o outro tipo de evolução:
aquele em que a banda muda (mas muda de verdade), desprezando
o que já foi feito antes e apostando sem medo em
novos horizontes. E o grupo que usarei de referência
para isto é o responsável pelo único
disco lançado até hoje que eu considero
melhor do que “Source Tags & Codes”... |
Fabrício Boppré, 23 anos, completamente
viciado em música,
às vezes aventura-se a escrever sobre seu vício
e publica tudo na Dying Days.
18/11/2002
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