Parece ser difícil
para a maioria das pessoas defender uma opinião razoável
sobre o que levou Kurt Cobain a dar um tiro em sua cabeça,
em abril de 1994. Normalmente acha-se que ele cometeu tal atrocidade
a si próprio por puro estrelismo, para ficar famoso definitivamente
ou algo nessa linha (quem sustenta essa opinião geralmente
são os detratores do Nirvana/Kurt Cobain), ou então
acha-se que ele foi sempre uma vítima ao longo de sua
história, um "gênio ingênuo" acorrentado
a uma indústria cruel, e que explodiu seus miolos por
não suportar mais esse falso sucesso e essa condição
de marionete (opinião da maioria dos idolatradores).
Pode conferir por aí, 95% das pessoas têm ou a
primeira ou a segunda opinião. Ou 8 ou 80.
Ambas as explicações
seriam os "casos extremos" e na minha opinião
nenhuma delas cabe como a verdade absoluta. Verdade esta que
talvez nunca venhamos a descobrir, já que o único
que poderia revelá-la era o próprio - apesar de
que muitos autores de livros póstumos sobre o cara prometem
contar a verdade em suas obras. Das duas opiniões vigentes,
a única que eu descarto por completo é a que diz
que Kurt agiu de maneira "premeditada", que o seu
objetivo era e sempre foi a fama, que sua integridade era descartável
e seu sofrimento falso, sendo o suícido o ato final dessa
grande farsa.
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Por que
desconsiderar essa possibilidade? Pelo fato de não
conseguir acreditar que alguém como Kurt Cobain
(tomando-se como parâmetro de análise seu
legado artístico) poderia se suicidar por preciosismo,
tirar sua vida não estando realmente em seu limite
psicológico, independente do motivo que tenha
o conduzido a essa situação. É
mais provável que as razões (porque obviamente
não se pode falar de uma única razão)
que o levaram a tal residam em pontos dispersos entre
esses dois extremos, afinal, também não
acho que ele tenha sido uma vítima total, impotente
diante dos acontecimentos. |
A quebra de uma ideologia (algum
culpado?), um momento de dor e confusão insuportável
devido ao vício em drogas somado ao ritmo alucinante
da meteórica carreira do Nirvana, a ganância
estúpida de ter seu nome no panteão das tragédias
do rock (o que geralmente leva esses nomes diretamente ao
panteão dos inesquecíveis também, apesar
da relação entre um e outro ser aparentemente
irracional), a incapacidade de lidar com toda a situação,
ou a simples vontade de acabar com tudo que se dizia e o que
efetivamente ele vivia, tudo isso estará em discussão
para sempre. Mas o fato que deve ser tomado como ponto de
partida para essa discussão é que Kurt atingiu
um limite físico/psicológico naqueles primeiros
dias de abril de 1994 (seu corpo foi achado no dia 8 de abril
e a perícia afirma que ele estava sem vida há
algo em torno de 4 dias). Acusá-lo de ter ao menos
forçado esse limite para virar um semi-deus é
uma acusação suja e improvável, dado
o motivo já exposto acima. Acho difícil alguém
levar a cabo um plano tão louco quanto esse, tendo
consciência de que após o ato não estaria
mais presente para ver sua obra mesquinha completar-se. No
entanto não considero impossível em um âmbito
geral, a raça humana é altamente imprevisível
e macabra. Mas ao levar-se em consideração que
a pessoa em questão era um artista com a personalidade
do quilate de Cobain, então essa opção
é eliminada imediatamente. Também é ingenuidade
achar que ele foi simplesmente uma vítima: não
aguentou mais ver seu nome nas camisetas e cadernos de crianças
e adolescentes de metade do planeta, e para salvar sua honra,
matou-se. O fator que levou Kurt a chegar ao limite, e que
fez todos os seus outros potenciais motivos para o suicídio
somarem-se e tomarem conta de sua mente, é aquele,
o mesmo da maioria das causas de morte no mundo do rock: o
uso indiscriminado de drogas. Sua crise na Itália (no
começo de março de 1994, Courtney achou Kurt
desmaiado em um quarto de hotel em Roma, onde a banda estava
se apresentando, resultado de uma overdose de remédios
misturados com champagne), pouco antes do derradeiro retorno
a Seattle, hoje pode ser amargamente entendida como o início
do fim. Já em Seattle, Kurt tentou se matar uma vez,
mas conseguiram detê-lo e interná-lo em um centro
de recuperação, de onde ele fugiria no dia seguinte.
Só voltaria a ser visto novamente no subsolo de sua
casa, estirado no chão com uma carta de despedida sobre
a mesa e uma arma por perto.
O abuso em seus últimos
dias de vida e a perda completa de seu senso de preservação
(reza a lenda que Kurt foi visto como um mendigo pelas ruas
de Seattle à procura de drogas após ter fugido
do centro de reabilitação) o levaram à
sua overdose final. O laudo feito após a análise
de seu cadáver garante que devido à quantidade
de heroína em seu organismo, sua morte seria questão
de minutos mesmo se ele não houvesse abreviado seu sofrimento
enfiando uma bala em seu cérebro. Inclusive esse é
um dos argumentos principais dos sensacionalistas que defendem
que ele foi assassinado, pois seu estado provavelmente dificultaria
o manejo de uma arma (mas para um junkie experiente como ele,
não deve ter sido muito difícil puxar o gatilho).
Detalhes técnicos à parte, sua situação
clínica certamente foi a faísca final para seu
último ato. Em sua mente fragilizada e irremediavelmente
danificada, devem ter se fundido todos seus problemas, pré
e pós Nirvana (ou seria pré e pós Nevermind?).
Em última instância, Kurt não morreu para
tornar-se um ícone, mas provavelmente para tentar atingir
algum alívio final, para tentar atingir um irônico
nirvana. E as substâncias que ele ingeriu e deram fim
em sua vida acabam funcionando infelizmente como uma maneira
covarde de corroborar qualquer história que venham a
contar acerca de sua morte.
De qualquer modo, Kurt também
não foi uma vítima completa das circunstâncias:
para um paciente médico, a força de vontade para
uma cura é fundamental (apesar de que seu problema com
drogas vinha de muito tempo). E como refém da mídia,
alguns "nãos" e um pouco mais de definição
para sua ambição bastariam para que a volúpia
comercial sobre ele e sua banda fossem freadas. Em um dos melhores
livros sobre Kurt, "Heavier Than Heaven", de Charles
R. Cross (no Brasil: "Mais pesado do que o céu:
Uma biografia de Kurt cobain", editora Globo), fica claro
que ele se preocupava com os caminhos que sua banda estava tomando,
a relação desta com o público, e a posição
de destaque que sua figura tinha assumido nisso tudo. Mas em
algum momento o controle sobre tudo isto se perdeu e a partir
deste ponto não bastava mais "querer" para
que a paranóia sumisse e sua trajetória retomasse
um caminho normal, tanto no que diz respeito à sua saúde
pessoal quanto à sua integridade como artista. Até
porque ambos se fundiram em sua vida, inspiravam-se e destruiam-se
mutuamente, corroendo seu espírito e formando uma espiral
demolidora que encerrou-se tragicamente. Havia um dilema em
sua vida, mas provavelmente ele nem percebia direito o que era.
Continuar mantendo uma postura punk rock diante de platéias
completamente desconectadas de suas raízes e sua formação
era somente mais uma das incongruências que mostravam
que algo estava errado. E sua mórbida fascinação
por armas? Quando nos recordamos desse detalhe, que sugere algum
tipo de inconsciente predisposto, vemos o quadro tornar-se ainda
mais confuso. Kurt estava destinado a morrer cedo, a deixar
um legado diminuto mas definitivo e exemplos positivos e negativos.
"It's better to burn out than to fade away".
Kurt Cobain partiu dessa para
uma melhor e deixou um rastro de questionamentos, teorias, cultos
e desprezo. Ao analisarmos sua história hoje em dia,
a uma distância historicamente razoável de todo
o ocorrido, podemos vislumbrar que dificilmente o fim seria
diferente e que fatalmente a incompreensão tomaria conta
ao tentar-se achar uma explicação mais, digamos,
fácil e indolor para seu desfecho. Um desequilibrado
afetado pela hiper-fama, desmedido em sua busca por fama e dinheiro?
Ou um herói que viu sua integridade lhe ser tomada em
prol da indústria, e como única forma de dar um
basta nisso, abdicou de sua própria vida? Esses são
os extremos, e talvez ambas as coisas estivessem na cabeça
confusa de Kurt Cobain em seus minutos finais, assim como provavelmente
ele também estivesse achando que o FBI lhe perseguia
através de discos voadores e havia algum monstro à
espreita dele dentro de sua própria casa. O vício
destruiu sua razão, tornando o fim bastante nebuloso
para os que acompanharam atônitos os acontecimentos (e
para daí surgirem as opiniões extremas sobre os
"comos" e "porquês" foi um passo).
O estado terminal robou-lhe sua sobriedade, e talvez em um último
momento de lucidez e clareza, ele tenha percebido que não
havia mais volta, e puxar o gatilho era a "solução".
Tudo sem muita lógica, desordenado e agravado pela sua
fragilidade e inconsciência doentia, completamente devastado
pelas drogas e pela impiedosidade e voracidade da situação.
Nem um extremo de culpabilidade para o assassino-assassinado
e nem um extremo de isenção e virtude completa,
apenas um triste fim discretamente (mas intermitentemente) anunciado
e sem culpados, um fim para o qual todos os caminhos de sua
vida e sua carreira parecem ter convergido.
Resumo da ópera: não
creio que exista uma razão líquida para o que
houve, não creio que possa-se dar um veredito de inocência
(vítima do "sistema") ou culpa (autor de uma
farsa) para Kurt Cobain. Não existe um fator único
e exclusivo para explicar tudo. Todos os fatos juntos, toda
a circunstância atrelada, fizeram do fim algo inevitável,
e cada elemento se analisado separadamente mostrar-se-á
insuficiente para justificar a brutalidade e irracionalidade
do desfecho. Cobain não conseguiu admitir que fora vendido
e não soube se cuidar, sucumbindo ao adotar a mais egoísta
das saídas. Ao mesmo tempo todos sabemos que a mídia
e a indústria nos dias de hoje são completamente
desumanas, e são capazes de construir e destruir pessoas
e ídolos como se fossem bonecos. E que as drogas te roubam
e te matam. Enfim, as discussões durarão para
sempre; os detratatores continuarão a negar solenemente
as evidentes virtudes e fragilidades de Kurt e a rir de sua
morte, enquanto os seus fãs fiéis continuarão
cegamente a ignorar os erros pessoais ao longo de sua vida e
a culpar o todo e qualquer fator externo pelo o que ocorreu.
Mas uma postura realista e uma isenta análise dos fatos
(mesmo feita por alguém que goste muito de Nirvana como
eu) mostram que esse pessoal tende sempre a estar longe do que
foram realmente as melancólicas vida e morte de Kurt
Cobain.
Independente de tudo isso, fica
a esperança de que um dia a sua estúpida morte
deixe de influenciar sua breve vida, e que assim venham a entendê-lo
e julgá-lo como uma artista sensivel e extremamente talentoso,
que é o que importa. Sua história revela que infelizmente
era também um doente, incapaz de conviver e gerenciar
os rumos que sua vida e sua banda tomaram. Não um herói,
mas sim alguém que cedeu sem perceber o que isso significava
e foi estuprado impiedosamente. Que talvez tenha sido seduzido
por milhões e por uma altíssima cota de centímetro
quadrado na mídia, e não teve forças para
desfazer o erro. Que gritou furiosamente e não foi compreendido.
Que viveu, escreveu canções eternas, e morreu.

Fabrício Boppré, 23 anos, completamente
viciado em música,
às vezes aventura-se a escrever sobre seu vício
e publica tudo na Dying Days.
29/03/2003