O
futebol, bem como várias manifestações
artísticas, já escancarou circunstâncias
onde a política dos dream teams resulta em grandes
frustrações. De vez em quando, algum clube
mega-milionário (ou mega-perdulário) resolve
apostar muito dinheiro e reunir grandes destaques da bola,
vislumbrando única e exclusivamente o triunfo irrestrito.
Quando tais fenômenos acontecem, as expectativas ultrapassam
limites e, na maioria dos casos, não são plenamente
correspondidas pelos resultados alcançados. Arte,
futebolística ou não, não se resume
a bons nomes elencados em uma planilha: para ela acontecer
de forma eficaz e triunfal, precisa de uma forte química
entre seus agentes. Esse detalhe certamente não passou
despercebido por Mike Patton quando fundou seu Fantômas.
Com o fim do Faith No More em 1998, Patton encontrou-se
livre das circunstâncias que envolviam uma banda com
alcance mundial. Longas turnês, conflitos com seus
ex-colegas e dificuldade em conciliar os destinos musicais
decretaram o encerramento de praticamente dez anos de um
desgastante compromisso, que em certo ponto passou a entrar
em conflito com seus projetos pessoais e a maneira como
gostaria de ser percebido pelo público. Ávido
por colaborar com outros artistas e espalhar suas idéias
por ramos musicais menos ortodoxos, o vocalista não
hesitou em jogar a última pá de terra sobre
a banda que lhe proporcionou notoriedade mundial. Entretanto,
mesmo com sua relevância gradualmente diminuída
com o passar dos anos, o Faith No More deixou milhares de
fãs abandonados, afinal, até seus momentos
mais fracos superavam muita coisa que se apresentava como
"ressurreição do rock" no final
da década de 90. Uma contrapartida ao fim da banda
tornava-se necessária.
Em meio ao desânimo geral dos fãs, uma pequena
evidência apresentou-se ainda naquele ano. Lançada
pela gravadora Tzadik de John Zorn, a coletânea de
covers "Great Jewish Music", dedicada a Marc Bolan
do clássico T-Rex, contava com uma faixa de Patton,
sob o pseudônimo de Fantômas. O indicativo,
que naquele momento poderia significar apenas mais um dos
inúmeros trabalhos nos quais o vocalista se metia
com freqüência, se revelaria no ano seguinte
um dos primeiros passos tomados por ele em sua nova realidade.

Fantômas ameaçou o mundo nos cinemas,
livros e na música
|
A
ação de Patton que responderia ao
final do Faith No More não tardou a se revelar
– e de forma um tanto diferente do que poderia
se imaginar: além da apresentação
de um novo projeto musical e do lançamento
de um novo disco do Mr. Bungle, inaugurou um selo
destinado a acolher sua música e a de artistas
que admirava. A Ipecac Recordings nasceu em 1999
e o seu primeiro lançamento foi justamente
o da misteriosa banda de Patton, o Fantômas
(cujo nome faz alusão a um vilão clássico
da literatura francesa, mestre em disfarces e exaustivamente
desenvolvido no cinema e na literatura no decorrer
das décadas). |
"Amenaza Al Mundo",
como é comumente conhecido, é o disco que
apresenta o Fantômas e deixa explícitas algumas
das razões do fim do Faith No More e os rumos que
Patton tomaria a partir dali. Além do formato musical
totalmente voltado para o avant-garde, onde o Naked City
de Zorn fez-se bastante presente, o álbum inaugura
uma tendência até então um tanto retraída
em seu autor: sua verve de composição. Embora
tenha participado de inúmeros projetos musicais desde
que inaugurou o Mr. Bungle em 1984, Patton nunca havia apresentado
um álbum autoral pelo qual se responsabilizasse plenamente,
algo que para muitos de seus fãs já poderia
ter acontecido há algum tempo. Elaborando mentalmente
as passagens sonoras, criou o primeiro disco do Fantômas
fixando sua temática nos quadrinhos (mais precisamente,
no título italiano "Diabolik" de 1962),
contextualizando-o de tal forma a atribuir cada faixa a
uma página imaginária. Recheado de vinhetas
de cinema B e efeitos sonoros, afastou-se da tendência
crooner que marcou a última turnê de sua ex-banda,
limitando sua voz a efeitos vocais e cacofonias diversas.
Estruturalmente, as músicas estavam associadas a
essa tendência, apresentando-se frenéticas
e inconstantes, trafegando a altas velocidades entre o grindcore,
o metal e os experimentos avant-garde citados. Como se todas
essas surpresas não bastassem, Patton se mostrou
soberano na escolha dos músicos que trariam suas
intenções para o plano real. Contrariando
a má-sorte inerente a muitos grupos que reúnem
estrelas, a escalação do Fantômas revelou-se
perfeita tanto no papel como na prática. Com as guitarras
sujas de Buzz Osborne (Melvins), o baixo jazzístico
de Trevor Dunn (Mr. Bungle) e a bateria selvagem de Dave
Lombardo (Slayer), Patton cercou-se de músicos capazes
de corresponder técnica e artisticamente a suas intenções
e construiu um dream team impecável (comenta-se que
o baterista do Sepultura, Igor Cavalera, também foi
cogitado a integrar a banda quando Patton projetava sua
formação). Tal fato foi provado desde os primeiros
shows do quarteto, onde Patton conduziu magistralmente a
execução de músicas quebradas, inconstantes
e de complicada execução, deixando muita platéia
perplexa e confirmando o acerto de suas escolhas.

Não adianta: imagens promocionais são
clichê mas são legais |
Mesmo com seus membros ligados
a outros compromissos, o Fantômas de forma alguma
perdeu relevância nos anos seguintes. O segundo álbum
do quarteto chegou às lojas em 2001, surpreendendo
muitos ouvintes. Já acostumados com a linguagem abstrata
do debut, foram agraciados com uma obra baseada em versões
de músicas de filmes clássicos ou obscuros
como "O Poderoso Chefão" e "O Bebê
de Rosemary". "The Director's Cut" aproximou-se
mais dos anseios de quem não se conectava com a ausência
de vocais convencionais, apresentando versões fiéis
aos originais à maneira Fantômas, com Patton
efetivamente cantando quando necessário. Nesse disco
é possível perceber uma maior habilidade do
mentor em aplicar efeitos eletrônicos e colagens sonoras
sobre a pancadaria habitual, dando mais magnitude ao resultado
e mais facilidade de absorção, graças
a uma conexão mais facilitada com o ouvinte. Como
um passo seguinte a um disco de comunicação
complicada, "The Director's Cut" aproximou o Fantômas
de muitos ouvintes que não assimilavam o avant-garde,
notoriamente os que mostravam predileção pelo
metal.
Sua turnê foi obviamente celebrada pelos fãs,
de tal forma que um registro ao vivo acabou especialmente
no catálogo da Ipecac em 2002. "The Fantômas
Melvins Big Band: Millenium Monsterwork" é a
gravação de um show combinado entre as duas
bandas na noite de ano-novo entre 2000 e 2001, que já
incluía faixas do álbum mais recente. No ano
seguinte, o Fantômas contribuiu com uma faixa do disco
"Masada Anniversary Edition vol. 3: The Unknown Masada",
de John Zorn, onde regravou ao seu modo uma das músicas
de um dos inúmeros projetos do saxofonista.
Sem
quebrar a tradição de nunca se repetir,
o Fantômas lançou em 2004 o seu disco
mais ambicioso (sendo que ambição
sempre foi uma constante na carreira da banda).
"Delìrivm Còrdia" leva à
risca os ensinamentos de anos no avant-garde, aproximando
Patton do nível de composição
de seus mestres. Tido como "difícil"
e "monótono" por até mesmo
muitos fãs do Fantômas, o álbum
aborda o ambient e os longos momentos de texturas
musicais, utilizando as pancadarias onipresentes
nos dois discos anteriores em bem menor escala. |

Pequeno detalhe do arsenal
(foto: Caroline Bittencourt) |
Patton mostrou-se magistral
na capacidade de contextualizar sua obra, dessa vez transformando-a
em uma trilha-sonora imaginária para intervenções
cirúrgicas, dotando-a de uma aura sombria e macabra.
Até mesmo por se apresentar em uma única faixa,
o que exige uma dedicação maior por parte
do ouvinte, o álbum se afastou da linguagem direta
(e nem por isso simples) das iniciativas anteriores, mas
revelou que Patton só evoluía em termos de
capacidade de composição e desenvolvimento
de sua música.
O quarto e mais recente disco da banda foi lançado
em 2005, desta vez, sem exatamente inaugurar um capítulo
tão distinto na discografia deles. "Suspended
Animation" surpreendeu os fãs que esperavam
mais uma etapa que divergisse das outras três anteriores,
pois o quarteto acabou oferecendo um álbum de estrutura
semelhante ao debut, com faixas muito ligadas ao grindcore
e freqüentemente fragmentadas, intercaladas com muitos
samplers, ruídos e sonoridades contraditórias.

du-da-grmph-tch-tch-GAAAA
(foto: Caroline Bittencourt) |
Embora
os vocais de Patton também apontassem para
a inteligibilidade do álbum de estréia,
o novo disco mostra evoluções na utilização
de samplers e eletrônica, que passou a integrar
as composições de forma mais massiva
e melhor encaixada. Ao invés de quadrinhos,
o tema principal são as animações,
plenamente audíveis no disco através
de sons de bichos de borracha esmagados e samplers
característicos de desenhos animados clássicos.
Além disso, cada música tem o seu
título vinculado a um dia do mês de
abril, quando foi lançado (a primeira edição
de "Suspended Animation" foi editada em
um encarte em forma de calendário de mesa).
|
Foi esse disco que proporcionou à banda sua primeira
visita ao Brasil, em novembro de 2005. Tocando em São
Paulo e no Rio de Janeiro no festival "Claro que é
Rock", o Fantômas foi responsável pelo
show mais polarizado do evento, com a grande maioria do
público deslocada em meio ao ensurdecedor e frenético
ataque sonoro capitaneado pela banda. O que para muitos
significou o encerramento das relações com
uma figura tão cultuada no Brasil durante os anos
90, para alguns foi a verdadeira realização
de um sonho. Nesses shows, bem como em alguns shows da turnê
de 2005, Lombardo foi substituído por Terry Bozzio,
em virtude de seus compromissos com o Slayer.

"Claro Que É M*rd*": mais uma frase
imortalizada por Patton
(foto: Caroline Bittencourt)
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O ano de 2005 ainda viu o lançamento
de um split obscuro do Fantômas com a banda Melt-Banana.
Contando com apenas uma faixa de cada banda (a do Fantômas
tem apenas quarenta e três segundos), o single saiu
por um selo italiano nos formatos sete polegadas e mini-CD
quadrado (!).
Difícil mesmo é prever os passos seguintes
do Fantômas. Para uma banda sem nenhum compromisso
com o mercado ou mesmo com seus ouvintes, o melhor a se
fazer é apenas aguardar por novos discos e recebê-los
da maneira como eles serão trazidos ao mundo. Em
meio a tantas incertezas, há sempre a segurança
de trabalhos arrojados e certeiros para quem gosta de música
inovadora e distanciada do lugar-comum.
Vicente Moschetti
fevereiro/2006
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