"Se a História for simpática com o Fugazi,
os discos da banda não serão obscurecidos
pela reputação e métodos de trabalho
deles. Ao invés de serem conhecidos por seu ativismo
comunitário, shows a cinco dólares, CDs a
dez dólares, resistência às ordens do
mainstream e risível folclore fictício cercando
seus estilos de vida, eles serão identificados por
terem fixado um grande nível para excelência
artística que é frequentemente buscado mas
raro de ser conquistado. Durante sua existência, o
quarteto criou algumas das mais inteligentes, revigorantes
e indubitavelmente musicais canções de pós-hardcore.
Lado a lado com sua ética underground - que se baseava
mais em pragmatismo e modéstia do que qualquer outra
coisa - eles ganharam um culto global numeroso e extremamente
leal. Para muitos, o Fugazi significava tanto quanto Bob
Dylan tinha significado para seus pais. (...) Mais que qualquer
coisa, o Fugazi inspirou; eles mostraram que a arte podia
prevalecer sobre o comércio." ALL MUSIC GUIDE
É no modo-Fugazi-de-ver-as-coisas que se torna mais
virulenta aquela ideologia que poderíamos chamar
de Ortodoxia Indie: a certeza de que as grandes gravadoras
são como Igrejas de Satã instaladas sobre
o planeta Terra para conspurcar e empodrecer nossos ouvidos
com lixo, a crença de que o mainstream é palco
privilegiado para o desfile de tudo o que há de risível
e deplorável no ramo da música, a convicção
de que estar com um clipe em alta rotação
na MTV ou subir ao topo da parada da Billboard é
sinal de demonismo, canalhice e falta de caráter...
Tudo aquilo que procure vincular a música à
engrenagem capitalista de multiplicação de
capital, tudo o que tem a ver com fabricação
de estrelas a serem amadas de joelhos nos altares pop, tudo
o que é feito com vistas ao sucesso e aos bolsos
cheios de verdinhas é absolutamente repudiado pelo
Fugazi. A salvação, não cansam de dizer
eles, é a Independência, o do-it-yourself,
o montar sua gravadora e produzir a si mesmo, a publicidade
boca-a-boca, o redemoinho de indie-zines. Estejam certos:
esses caras NUNCA irão assinar um contrato com a
Warner Brothers, NUNCA estarão sendo anunciados no
topo do Disk MTV, NUNCA venderão mais de um milhão
de cópias de qualquer de seus álbuns, NUNCA
vão permitir que seus CDs sejam vendidos por mais
de 10 dólares, nem que a entrada para seus shows
custe mais do que o proletariado pode pagar, e nem por isso
deixarão de ser considerados como uma das mais influentes,
incendiárias e inspiradoras bandas dos anos 90.
O modo de trabalho do Fugazi praticamente resume o Evangelho
Indie: fuja do mainstream e das majors, funde tua própria
gravadora
(nesse caso, a já lendária Dischord), venda
seus discos a 10 paus e seus ingressos a 5, dê entrevistas
quilométricas para zinões toscos de fundo
de quintal enquanto levanta o dedo médio pra Rolling
Stone e pra NME, e nunca se esqueça de denunciar
toda a podridão que se esconde por trás do
Esquema do Pop capitalista - que é ganancioso, fútil,
burro, farsário e alienante (pra dizer o mínimo).
A Dischord, nascida para que o Teen Idles, antiga banda
de Ian MacKaye, pudesse auto-lançar seu material,
hoje já tem mais de 20 anos de idade e está
devidamente consolidada como um pilar fundamental para o
rock independente americano nas últimas décadas.
"É difícil de imaginar onde milhares
de bandas estariam hoje - Rage Against the Machine, Nirvana,
Beastie Boys, Sleater-Kinney - se a Dischord não
tivesse emergido no horizonte cultural nos anos 80",
diz matéria na SALON. "Diferente de muitas gravadoras
independentes, a Dischord não se comporta como um
gravadora major em miniatura. Nenhuma das dezenas de bandas
que lançaram discos com MacKaye o fez sob qualquer
obrigação contractual com o selo. CDs, vinis
e outros lançamentos recebem um preço congruente
com os custos de produção e distribuição".
Ou seja, a Dischord é quase uma
empresa sem fins lucrativos atuando muito mais por amor
ao punk rock do que por ganância financeira. O próprio
MacKaye esclarece: "um aspecto dessa gravadora que
resultou em nossa longevidade é que eu odeio a indústria
de discos. Eu nunca quis possuir uma gravadora em si. Eu
queria lançar discos e eu odiava tanto a indústria
que não conseguia suportar a idéia de qualquer
outra pessoa lançando os discos... pois eu nunca
pude confiar neles." Uma boa amostra do que fez a gravadora
nessas duas décadas de vida pode ser encontrado no
box 20 Years Of Dischord, recentemente lançado nos
EUA, que resume em 3 CDs o que de melhor foi gravado nos
estúdios do selo.
Além dessa radical tomada de posição
anti-capitalista, o Fugazi também é famoso
por ser a banda preferida do pessoal que segue o chamado
Straight-edge, termo que não deve ser familiar àqueles
que não estão inteirados com os subterrâneos
da cena punk, valendo a pena então dar uma clareada
no seu significado. "Straight Edge" é,
antes de mais nada, uma música do Minor Threat, a
banda de hardcore que Ian MacKaye chefiava na segunda metade
dos anos 80, música esta que serviu para batizar
um "movimento comportamental" dentro da cena punk.
Os mais fanáticos seguidores vêem nele muito
mais do que uma modinha ou do que o nome de uma tribo urbana:
para eles, Straight Edge é uma seríssima filosofia
de vida seguida com uma ortodoxia digna de um religioso
fervoroso. Para os detratores, os punks straight-edge representam
a parcela mais "puritana" e "moralista"
dentre os punks, mas não há poucos que ressaltam
o fato de que o straight-edge foi importante para provar
que ser um punk não era sinônimo de ser imoral,
violento, vândalo e/ou nazistóide...
Fugazi ao vivo
A filosofia straight-edge solicita de seus seguidores que
não consumam nenhuma droga (nem mesmo o álcool),
que não se entreguem a relações sexuais
casuais e promíscuas, que pensem com uma "mentalidade
comunitária", que não se deixem nunca
arrebatar pela violência, dentre outros preceitos.
Há até mesmo aqueles que se pronunciam convictos
vegetarianos! Apesar de haver uma série de bandas
underground que se dizem straight-edge, o Fugazi e o Minor
Threat permanecerão sempre como as duas bandas-símbolo
do movimento e Ian MacKaye, queira ou não, como o
messias dessa religião laica (Ian rejeita a idéia
de ser o criador desse estilo de vida: ele admite que o
personagem retratado em sua canção era ele
mesmo, mas nunca quis influenciar o comportamento de ninguém).
Não é difícil de simpatizar com a banda
só por isso que ficou dito, e não foram poucos
os que manifestaram sua empatia com a luta fugaziana (Kurt
Cobain, por exemplo, declarou que muito admirava a "integridade"
do Fugazi). Mas por enquanto ainda não saímos
do domínio da política, do comportamento,
da atitude frente ao capitalismo e à indústria
cultural, e não chegamos ao que também interessa
checar: a música. "Se a História for
simpática com o Fugazi, os discos da banda não
serão obscurecidos pela reputação e
métodos de trabalho deles", disse o simpático
sujeito que escreveu a bio da banda para a AMG. E é
fato que a banda chega a ser mais célebre pela ideologia
indie ortodoxa e pelo modo-de-viver straight-edge do que
pela própria música que fazem.
As mitologias que circulam por aí sobre os membros
da banda beiram a lenda folclórica e acabam desviando
a atenção pra longe do som. "Uma vez
que a banda não dava entrevistas para publicações
grandes, alguns jornalistas foram deixados livres para improvisar
e optaram por tomar licença criativa. As fofocas
entre a base de fãs era igualmente imaginativa. De
fato, alguns dos caras que iam aos shows poderiam se surpreender
de ver a banda chegar aos locais em vans, e não num
comboio de camelos. Aqueles que falavam com membros da banda
ficavam surpreendidos de ouvir que eles viviam em casas
- e não em monastérios - com calefação
funcionando... e que suas dietas não eram estritamente
à base de arroz", diz o bem-humorado cara da
AMG.
Enfim, é preciso ir à música, e é
isso o mais importante. É chegado o tempo de começar
a ouvir o som do Fugazi ao invés de só reconhecê-los
pela política frente à indústria cultural
e a moralidade rígida que seguem. Que os holofotes
finalmente iluminem a música do Fugazi e não
só a desgraçada da Atitude!
Descrever a música com palavras
sempre é tarefa complicada, mas tentemos. O Fugazi
sempre me pareceu a irmã menor do Gang Of Four na
família que tem por papai o The Clash e por mamãe
o pós-punk ao estilo PiL (se bem que com uma violência
sônica mais brutal). Como o Gang e o Clash, o Fugazi
também é uma banda profundamente política,
engajada, militante, mas a analogia não pára
por aí. A música do Fugazi compartilha com
o Gang of Four e com o pós-punk em geral alguns elementos
clássicos: a preferência dada ao fator rítmico
sobre o melódico, a gravidade dos instrumentos solo
(que faz com que as guitarras tenham aquele som quase de
baixo e que quase nunca saiam fazendo solinhos agudos),
a ausência quase completa de lá-lá-lás
cantaroláveis. O Fugazi é muito mais um monstro
rítmico barulhento do que uma fábrica de doces
melódicos, caindo vez ou outra num experimentalismo
que beira a atonalidade e o sonic-youthianismo. Bandas como
o ...Trail of Dead, o Mission of Burma, o Jesus Lizard,
o Jawbox, o Plastic Constellations e o Giddy Motors seguem
o mesmo evangelho e são outros parentes próximos
na família Fugazi.
A banda começou sua caminhada em 1987, na capital
americana Washington, formada das ruínas de algumas
bandas importantes na consolidação do hardcore
e do emo americano. Do Minor Threat, banda de rápida
carreira que é hoje considerada uma das mais importantes
da história do hardcore (lado a lado com os Dead
Kennedys, o Husker Du, o Discharge...), saiu o vocalista
Ian McKaye. Do Rites Of Spring, o guitarrista e vocalista
Guy Picciotto. Foram complementados pelo baixista Joe Lally
e pelo baterista Brendan Canty. Através dos anos
90, lançaram (sempre via Dischord) os seguintes álbuns:
"13 Songs" (que reúne os dois primeiros
EPs lançados pela banda, o auto-intitulado de 1988
e o "Margin Walker" de 1989), "Repeater"
(1990, relançado nesse mesmo ano com 3 faixas bônus,
que haviam sido lançadas no EP "3 Songs"),
"Steady Diet Of Nothing" (1991), "In On The
Kill Taker" (1993), "Red Medicine" (1995),
"Instrument" (trilha-sonora de um documentário
sobre a banda, 1998) e "End Hits" (1999).
O século 21 conhece somente dois
lançamentos do Fugazi: o LP "The Argument",
de 2001, e o EP "Furniture", lançado no
mesmo ano. As atividades da banda hoje em dia são
mais esparsas, devido aos projetos paralelos de seus membros
(Ian criou uma nova banda, o The Evens, e Guy anda produzindo
filmes), os selos (além da Dischord, existe o Tolotta,
de Lally) e a produção de bandas iniciantes.
Tanto pela música empolgante e
contagiosa quanto pela atitude muito elogiável, o
Fugazi é tipo um MODELO. A heróica banda que
segura a bandeira do underground com a mais firme das mãos
e que conduz o mastro da Dischord por mares turbulentos
sem naufragar. Os corajosos punks que ousaram questionar
todos os estereótipos e sugerir que ser punk poderia
ser outra coisa que não somente destruição,
anarquia e niilismo (e que podia se basear em espírito
comunitário, ativismo político, construção
de valores alternativos...). Enfim: a banda-emblema dos
anos 90 a provar que "a arte podia prevalecer sobre
o comércio". Uns HERÓIS, esses caras.