Shirley
Manson continua sendo o irresistível standard da
banda, mas não o único. Há ousadia
no trabalho de todos os integrantes sem apelar simplesmente
para mixagens aleatórias feitas por computador -
obviamente este tem um papel destacado na sonoridade do
álbum, assim como em toda a discografia do quarteto,
mas pode-se sentir o trabalho “manual” de cada
um com arranjos mais sofisticados, e o trabalho de software
fica somente a cargo da mixagem final: prova da secundariedade
é a opção incluída no CD de
remixar de várias formas as músicas do álbum.
“beutifulgarbage” tem indiscutivelmente
uma aura cor de rosa, glam-rock, em outras palavras, é
uma ode à androginia, à feminilidade, e um
trabalho mais particular para Shirley Manson com confissões
interessantes, explorando temáticas gay e canções
mais exibicionistas e performáticas. Como letrista,
Manson alcança seu momento mais maduro e expressivo.
De longe, “Cherry Lips (Go Baby, Go)” é
a mais impressiva do álbum, baladinha com influências
de new-wave, parece alegre e descartável a primeira
vista. Mas sendo inspirada no personagem Cherry, do livro
“Sarah” de JT LeRoy, um garoto que se prostitui
e traveste desde os 12 anos, a canção ganha
peso em todos os sentidos, soando auto-sarcástica.
O Go baby, Go refere-se a enfrentar o HIV contraído,
sair do vício em heroína e da vida de travesti,
como o personagem semi-auto-biográfico de LeRoy.
Os vocais soturnos de Manson são drasticamente substituídos
por um tom doce, falsete que lembra Madonna, e no vídeo-clipe,
as madeixas vermelhas foram tosadas e platinadas à
la Brigitte Nielsen... tudo cria um ambiente psicodélico
de ilusão, viagem por narcóticos, que de certa
forma permeia todo o álbum. Do outro lado da moeda,
“Androgyny” é de longe a mais comercial
e ofuscada do álbum, loops de computador simples,
feita pra ser engolida nas rádios. Como o título
já diz, também trata de certo modo sobre homo
e bissexualidade, exibicionismo de Shirley e seu desejo
de se vestir de menino. Não chega a ser um ponto
fraco desse trabalho, já que aparece no início
do álbum como um track simples para acostumar o ouvinte
às mudanças mais profundas das próximas
canções.
“Can’t Cry These Tears”
nos remete aos anos 60 e o charme inocente teen que lembra
“The Supremes”, “Stop! In The Name Of
Love” – na verdade trata-se de uma canção
nos moldes de Phil Spector que fez brotar aquelas típicas
girl-bands nos anos 60. Sinos e corais ao fundo, sedutores
riffs de guitarra acompanhando Manson e seu melodrama juvenil:
é uma daquelas canções que em performance
ao vivo justifica tantos homens caindo aos pés de
Manson; “Drive You Home” segue a mesma linha,
porém é mais melancólica em sua confessionalidade
– e uma das mais bonitas do álbum. Outras seletas
irresistíveis, porém com mais ação:
“Silence Is Golden” e sua pegada forte de blues,
uma das melhores da carreira do Garbage. Assim como “Cherry
Lips”, “Silence Is Golden” ganha muito
peso pela sua mensagem - Manson se inspirou nos relatos
de amigos que foram molestados na infância - e criou
uma fortíssima alegoria para a negação
e a dissimulação. A alternação
de ritmo nos últimos instantes da canção
é reveladora. “Til’ The Day I Die”
é o “hit” mais hibridizado do álbum:
R&B, blues, gospel, e a eletrônica que se sobressai...
definitivamente uma das mais dançantes do quarteto,
estranho apenas não ter virado single.
Em termos de sensibilidade, “So Like
A Rose”, “Cup Of Coffee” e “Breking
Up The Girl” ofuscam totalmente as típicas
baladas de encerramento de álbum como “You
Look So Fine” e “Milk”. “So Like
A Rose”, sempre acompanhada por uma guitarra que chora,
talvez seja a mais tocante canção da discografia
do grupo. É um relato traumático de Manson,
talvez do sentimento de auto-destruição e
suicídio que permeou sua infância e adolescência
devido as zombarias e humilhações em relação
à seus olhos grandes e cabelo ruivo. Apesar de hoje
isso ser um absurdo óbvio para alguém que
já foi modelo do Calvin Klein, ainda deve machucar
tanto quanto as vezes em que voltava sangrando da escola;
“So Like A Rose” é contida e subjetiva,
um momento para se deixar à sós Shirley e
seus fantasmas. “Cup Of Coffee”, bela balada
de fim de relacionamento permeada de celos, violinos e um
sentimento frio de indiferença... o café que
os acompanha na discussão é mais importante
que o rompimento. “Breaking Up The Girl” é
um momento singelo do álbum, coros ao estilo iê,
iê, iê, batidinha grudenta, fala sobre o desmantelamento
da ingenuidade e apesar de ter sido o single que menos teve
receptividade, é bem mais maduro que canções
como “Why Do You Love” do álbum posterior.
As únicas canções que
lembram o antigo Garbage: o opentrack “Shut Your Mouth”,
que apesar dos moldes de dicção hip-hop, é
a única diretamente agressiva, e depois de Androgyny,
a menos desenvolvida do álbum - de novo loops de
computador imperam sem muita expressão; “Nobody
Loves You” é um excelente momento do álbum,
retorno do pessimismo e melodia intimista, é talvez
a que se assimile com maior facilidade na primeira audição;
e “Parade” lembra muito “When I Grow Up”
e sua execução com velocidade, guitarras com
altos e baixos e batida dançante. E a única
que sobra deslocada é “Untouchable”,
alternando momentos deslumbrantes, como o que acompanha
o trecho “It must be Nice... To be so sure…
And never feel insecure…”, e um refrão
bastante medíocre, com uma batucada estranha no piano.
Para uma banda que construiu sua reputação
com um estilo dark, sem dúvida “beutifulgarbage”
estava fadado ao fracasso com os fãs. Sua psicodelia
pop, mesmo que travestida de auto-sarcasmo e desilusões
trágicas não se desvencilhou de rótulos
negativos. Infelizmente isso é uma heresia em termos
de Garbage, que leva no nome o caráter de se reciclar,
experimentar, e que nunca surgiu para cumprir lema ou estilo
algum. Certamente eles alcançaram seu melhor momento
neste trabalho, mas é uma pena que tenham desistido
tão fácil, retornando ao que eram em “Bleed
Like Me”, quando poderiam dar mais um grande passo...
para frente.