Se você aprecia a instituição
da canção, essa ferramenta de degelo de corações
frios, que move estados de espírito tão díspares
quanto alegria inocente e radiante ou tristeza pungente
e dolorida, você precisa conhecer o Iron & Wine.
Nem mais nem menos que uma one-man-band folkster
fantástica, Iron & Wine é Samuel Beam.
E Samuel Beam é um sujeito aparentemente normal,
meio gordinho, com uma vasta barba desarrumada e olhar azulado
de aspecto eternamente perdido, que nasceu e cresceu na
Carolina do Sul, mas é atual residente da Flórida,
onde, até bem pouco tempo atrás, ainda ministrava
aulas de cinematografia numa faculdade de cinema (óbvio)
local. Paralelamente, Beam gravava canções
rústicas e de tom levemente agro-pastoril usando
um violão, voz e um gravador portátil, dentro
de seu próprio quarto, num esquema estritamente lo-fi.
Algumas destas canções chegaram aos ouvidos
do então magnata da SubPop, Jonathan Poneman, por
meio de uma compilação encartada numa certa
revista de música de Seattle (o intermédio
foi reforçado por Matt Brooke, amigo de Sam Beam,
cuja banda Carissa's Weird estava fazendo contatos com o
selo). Poneman gostou do que ouviu, contatou Beam, e, depois
de algumas rápidas trocas de idéias, recebeu
de Beam dois CDs com as supracitadas gravações
caseiras, das quais 11 faixas foram selecionadas e originaram
o primeiro longplay, "The Creek Drank The Cradle".
Imediatamente, comentários elogiosos começaram
a pulular aqui e ali e, daí para a consolidação,
foi um pulo.
"The Creek" chamava a atenção
por seu conteúdo altamente inspirado de música
folk cortante, sussurrada e rústica. O aspecto "gravação
de baixa fidelidade" casava tão bem com o estilo
proposto pelo disco que parecia que Beam tinha descoberto
uma nova fórmula, que alguns até arremedaram
batizar de lo-folk. A faixa inicial, "Lion's Mane",
condicionava todo um novo universo numa canção
bucólica de tonalidades rarefeitas. O conjunto de
canções em si era tão forte que muitos
consideram este o registro definitivo do artista, o que
pode até ser contestado, se analisada a qualidade
também soberba nos trabalhos posteriores. Mas não
havia de ser nada. Até então, Samuel Beam
encarava isso com o maior despojamento do mundo. Afinal,
tratava-se apenas de um mero hobby.
O interesse em torno de Iron & Wine só
fez crescer, com Sam Beam recebendo apupos de fãs
e de uma crítica gradativamente mais empolgada conforme
o tempo passava, a ponto de motivar a gravação
de um novo disco. Desta vez, um extended play, batizado
"The Sea and The Rhythm". Pronto. Agora, Iron
& Wine tinha meio mundo alternativo a seus pés.

Samuel "Iron & Wine"
Bean
O EP, lançado em 2003, seguia o mesmo
padrão apresentado em "The Creek", mas,
por ser mais enxuto - 6 faixas, menos de 28 minutos - parece
ter exercido um poder de atração ainda maior
que seu predecessor. A gravação permanecia
embebida em rusticidade, e esse mix cru fazia uma cama perfeita
para a voz e as letras, ambas cada vez melhores. Para uma
amostra, uma rápida ouvida em "Jesus The Mexican
Boy" lhe mostrará tudo que você precisa
saber sobre o mini-álbum. Como se não bastasse,
a faixa título disputava a unhas e dentes o título
de canção mais bonita do planeta com todo
o disco anterior. Um feito e tanto para um artista modesto,
que se preocupava mais em dar suas aulas na faculdade e
passar o tempo restante com suas duas filhas.
No ano seguinte, um novo disco e novas perspectivas:
viver de música (o que àquela altura parecia
bem simples) e dedicar-se com mais afinco à produção
de seus álbuns. Beam, então, fez as malas
e foi pra Chicago, onde o próximo disco, "Our
Endless Numbered Days", seria feito, com gravações
já agendadas no Engine Studios, de Brian Deck, uma
pequena meca da alternatividade local. Obviamente, o resultado
soaria diferente em relação aos trabalhos
anteriores. Dito e feito. "Our Endless Numbered Days"
chamou a atenção, novamente, de muitas pessoas.
Pelos motivos errados, alguns dizem. O caso é que
todos os indícios de tosquice das gravações
anteriores, que pareciam tão cruciais na estética
das canções, haviam sumido. Em contraponto,
a simplicidade das estruturas continuava a mesma. Samuel
Beam havia entregado aos fãs um disco que soava cristalino,
e muita gente reclamou, alegando que uma das maiores qualidades
do artista havia se perdido. Mas o fato é que aquele
foi outro maravilhoso registro musical de voz e violão,
como encontramos poucos por aí. O carro chefe do
disco era mesmo a linda "Naked As We Came". Válido
também mencionar que, agora, outros músicos
tocaram no álbum (Sarah, irmã de Beam, fazendo
vocais de apoio, Patrick McKinney tocando slide guitar e
banjo, e Jonathan Bradley na percussão), e alguns
deles (que, em entrevistas, Beam insiste em dizer que não
sabe "quem fez o que no disco, exatamente", que
contou com a participação de "bons amigos
e músicos impressionantes, que trataram desde gravar
ou auxiliar na gravação das canções,
até sustentar boas conversas para inspirá-las")
dão o suporte necessário às apresentações
ao vivo, que, deste ponto em diante, passaram a ser recorrentes,
em turnês e mini-turnês, excursionando com outros
grupos e artistas igualmente talentosos.
E em se tratando de entrevistas, em uma delas,
quando perguntado sobre a possibilidade de "eletrificar"
seu som, Sam Beam foi bastante taxativo: "fiz o que
pude até agora, com os recursos disponíveis,
o que não quer necessariamente dizer que eu tenha
a intenção de manter um esquema simplista
na minha música. O fato é que, até
bem pouco tempo, eu nem tinha uma guitarra elétrica".
Com isso, podia-se concluir que uma possível guinada
sonora não estaria fora de cogitação.
A prova cabal veio no princípio de 2005, com o lançamento
de seu novo EP, "Woman King". "Woman King"
foi, até o momento, o grande diferencial na carreira
de Iron & Wine. O extended apresenta um som "cheio"
e rico em instrumentos e arranjos sem precedentes nos lançamentos
anteriores. Uma das faixas ("Evening on the Ground
(Lilith's Song)") apresenta, até mesmo, guitarras
distorcidas marcando a canção, puxada por
um "riff" (eis um termo que soa mais adequado
ao metal e congêneres, mas que dificilmente seria
dispensável no contexto deste fragmento) meio nebuloso
e rasgado. E, como de hábito, Beam crava uma canção
magnífica que se destaca por sua beleza sublime e
cortante: "Jezebel" aderirá ao seu córtex
instantaneamente e suscitará perguntas do tipo "como
esse cara consegue?".
É bem provável que a aura cool
(e, por que não, já cult?) que tem se formado
ao redor do nome Iron & Wine seja a grande responsável
pela expectativa e impaciência por um novo lançamento
do sujeito, que parece gradativamente melhorar ao incorporar
novos elementos a uma música que, em essência,
já é não menos que fantástica.
Quem é fã sabe do que eu estou falando. Talvez
sua experiência com cinematografia seja o grande trunfo
de Beam para a construção de uma música
de beleza ímpar, sustentada por um viés totalmente
cinemático. A fusão de sons e palavras da
maneira mais mágica que se possa imaginar. Nick Drake
e Elliott Smith, tomando juntos uma cerveja num boteco do
éden, batem palmas.
No final de 2004, Sam Beam concretiza um
plano traçado já fazia algum tempo: entrar
no estúdio e gravar algo em parceria com Joey Burns
e John Convertino, do Calexico. O resultado, o EP "In
The Reins", lançado em setembro do ano seguinte,
é também fantástico. O disco traz 7
composições de Beam, com o pessoal do Calexico
atuando nos instrumentos e backing vocals.
Renato Mazzini
junho/2005
Atualizado por Fabricio Boppré em abril/2006