Sem dúvida alguma, Jeff Buckley foi um dos talentos
mais peculiares e promissores na década de 90, não
cumprindo todas as expectativas em torno de seu trabalho
devido unicamente a sua precoce morte. Enquanto Kurt Kobain
encabeçava o grunge e a crítica já
rotulava o post-rock, Jeff Buckley surge com pretensão
somente no nome herdado do pai, Tim Buckley, lenda ofuscada
nas décadas de 60 e 70. Mas diferente do pai, Jeff
ascendeu em meio a profundas revoluções musicais
apenas com sua personalidade impactante e principalmente
com sua incrível voz de menos três oitavos
e meio, também uma herança de seu pai. Mesmo
após sua morte, ao longo dos anos noventa até
os dias atuais, Buckley é constantemente relembrado
nas listas de “favoritos” de artistas consagrados
como Robert Plant, Jimmy Page, Bob Dylan, Patti Smith, Thom
Yorke e Björk, somente para citar alguns. A crítica
também aponta, de forma quase unânime, seu
único álbum, “Grace”, como um
dos melhores daquela década e de todos os tempos.
Sua trajetória certamente renderia um roteiro para
um filme de Curtis Hanson ou Cameron Crowe. Nascido nas
redondezas de Orange County, na Califórnia, como
Jeffrey Scott Buckley, foi o único e bastardo filho
do fracassado casamento entre Tim Buckley e Mary Guibert,
uma descendente de panamenses. Tim figurou como uma “segunda”
estrela entre as décadas de 60 e 70, apesar de seu
trabalho com o folk e o jazz ter sido aclamado pela crítica.
Os dois casaram-se em 1965 e Tim abandonou Mary em 1967,
pouco depois dela dar à luz Jeff. Em 1969 Mary se
casou com Ron Moorhead, com quem viveu também por
poucos anos, até 1973, e teve outro filho, Corey,
meio-irmão de Jeff. Foi somente durante este curto
tempo que Jeff teve realmente um pai, sendo chamado de Scott
"Scottie" Moorhead e relembrado assim pela família
até hoje. Em 1975, para selar uma infância
já conturbada, Jeff vem a conhecer seu pai por apenas
uma semana, depois da qual sairia modificado. De certa forma
Jeff encontrara seu eixo musical na figura do pai, da qual
podia ver o reflexo de um dom natural. Dois meses depois
do encontro, Tim morreria por overdose de heroína
aos 28 anos de idade. Aos dez anos, apesar da ausência
do pai em sua vida e talvez para supri-la de alguma forma,
Jeff decide assumir somente seu nome de nascença,
com o sobrenome do pai e uma adolescência de experiências
musicais pela frente.
Durante os anos oitenta Jeff passa a coletar o som de bandas
como Led Zeppelin, Van Morrison – importantes influências
em seu trabalho - The Smiths – que ele considerou
“a única coisa que realmente valera a pena
na música dos anos oitenta” - dentre outras
bandas setentistas, principalmente. Começa a tocar
guitarra já no colegial e aos dezoito anos muda-se
para Los Angeles onde durante dois anos fez um curso no
Musicians Institute (Guitar Institute Of Technology). Considerou
aquilo “perda de tempo” apesar de ter feito
importantes amizades musicais, tocando guitarra em várias
bandas sob a influência de outras sonoridades como
o reggae do Shinehead e o rock com influências de
R&B do Group Therapy. Nesse período conheceu
novas influências para seu trabalho no som de artistas
mais refinados como Leonard Cohen, novelista e poeta canadense
que se aventurou por uma carreira musical aclamada, Édith
Piaf, ícone da música francesa e Nusrat Fateh
Ali Khan, maior exemplar do qawwali, a música dos
Sofis. Sonoridades mais clássicas como o jazz, a
música folk e o blues também tornaram-se influências
marcantes.
Em 1990 Jeff muda-se para Nova Iorque onde começaria
definitivamente uma carreira, tocando nos pubs locais após
estrear num show tributo para seu pai. Até então,
Jeff ironicamente evitara cantar, talvez uma fuga às
comparações com Tim Buckley, mas o que era
para ser apenas uma homenagem ao pai torna-se uma apresentação
debut e tanto do filho. Junto com o ex-guitarrista do Captain
Beefheart, Gary Lucas, Jeff Buckley canta “I Never
Asked To Be Your Mountain” de Tim, mas sua performance
a cappella de “Once I Was” deixa o público
impressionado, incluindo Lucas. Gary figurava como um guitarrista
experimental e dividiu com Jeff a idéia de montar
um duo. Em 1991 os dois montam “Gods And Monsters”
na qual trabalham juntos em composições próprias
e fazem elogiadas apresentações pela cena
underground nova-iorquina. Com o sucesso da banda, Gary
e Buckley estavam prestes a assinar um contrato para gravar
um álbum, mas Jeff desiste da idéia salientando
seu desejo de uma carreira solo. Um material contendo canções
feitas pelos dois é lançado em 2002, “Songs
To No One”.
Nos anos seguintes Jeff seguiria se apresentando nos pubs
da East Village de Nova Iorque em performances acústicas,
acompanhado apenas de sua guitarra. Atraiu instantaneamente
a atenção de “olheiros” da Columbia,
que em 1993 lhe propõem um contrato. Em dezembro
era lançado o EP “Live At Sin-e”, com
quatro canções ao vivo de Jeff no pub Sin-e,
onde costumava tocar (e agradar) muito. Duas delas eram
covers: da francesa Édith Piaf – "Je N'en
Connais Pas Le Fin" – e "The Way Young Lovers
Do" de Van Morrison. As outras duas eram composições
próprias que apareceriam no álbum “Grace”:
a primorosa “Mojo Pin”, feita em parceria com
Gary Lucas, e “Eternal Life”.
Antes do lançamento de “Live At Sin-e”,
Jeff e uma banda composta por Mick Grondahl no baixo, Matt
Johnson na bateria e guitarra de apoio, entram em estúdio
para gravar "Mojo Pin", "Grace", "Last
Goodbye", "So Real" – Michael Tighe
co-escreveu-a e tocou guitarra; depois viria a integrar
a banda permanentemente – "Lover, You Should
Have Come Over", "Eternal Life" e "Dream
Brother", além de três covers: "Lilac
Wine" de Nina Simone, "Hallelujah" de Leonard
Cohen e "Corpus Christi Carol" de Benjamin Britten.
Todas iriam compor o álbum “Grace”. Quando
“Live At Sin-e” é lançado, o EP
é avaliado como um promissor trabalho e apesar de
não receber grande atenção da crítica,
consegue fazer Jeff ter uma micro-turnê, que se estenderia
para a Europa e o mundo após o lançamento
já programado de “Grace” para o meio
do ano.
De janeiro a março de 1994, Buckley e sua banda
se apresentariam tradicionalmente em pubs e cafés
pela América do Norte; a turnê estender-se-ia
então para a Europa a partir daí. No dia 23
de agosto começaram uma turnê pela Irlanda
e no mesmo dia o álbum “Grace” é
lançado nos Estados Unidos. Os elogios rasgados ao
álbum não demoraram para surgir, e os shows
de Jeff Buckley começaram a ficar mais badalados.
“Grace” impressionou a crítica pela textura
de sonoridades e Jeff provava ter uma sensibilidade ímpar
para hibridizar estilos sofisticados em baladas vicerais;
as letras intrigantes falando sobre redenção,
resignação e contato com o epifânico
eram interpretadas magnificamente por uma voz de alta performance.
A canção “Grace” não à
toa dá nome ao álbum: uma entrega à
morte embalada pelo mais sincero júbilo e pelos arranjos
mais primorosos do álbum. Ao longo da turnê,
Jeff ia conquistando elogios de vários artistas renomados
como Paul McCartney e Bono Vox, sendo que este último
definiu Buckley como “uma gota cristalina em um oceano
de ruídos”.
Durante os anos de 1994 e 1995, Buckley fez inúmeras
colaborações com outros artistas, das quais
a de maior destaque é o duo com Patti Smith na música
“Beneath The Southern Cross”, além de
ter tocado Esraj – instrumento indiano parecido com
um violão celo – em “Fireflies”.
Essas duas canções estão no álbum
“Gone Again” de Smith, aclamado pela crítica.
Também colaborou com a vocalista do Nymphs, Inger
Lorre, tocando guitarra, sax e cítara em “Angel
Mine”, que integra o repertório de canções
de vários artistas num tributo ao poeta Jack Kerouac;
deu voz as canções “Jolly Street”
do Jazz Passenger; “Taipan” e “D. Popylepis”
com John Zorn e fez backing vocal, além de tocar
guitarra, na canção “Faith Salons”
com Brenda Kahn. Tocou baixo nas canções "If
You Please Me," "Outdoor Elevator," e "Needle
Men" – na qual também toca bateria –
com Rebecca Moore.
No fim de setembro de 1994, Buckley e sua banda voltam
para a América para se apresentarem no Sin-e em um
concerto especial de fim de ano, além de uma participação
de Jeff em um evento de leitura de poesias, o St. Mark's
Church Marathon Poetry Reading, no dia do ano novo. Após
a breve passagem pelos Estados Unidos, retornam a Europa
para depois seguirem em shows pelo Japão. Em abril
de 1995, recebe o “Gran Prix International Du Disque”,
prêmio da crítica e indústria fonográfica
francesa – já cedido a Bob Dylan, Bruce Springsteen
e a Édith Piaf – e “Grace” é
condecorado como disco de ouro. “Last Goddbye”
conseguiu um 19º lugar na parada pop da Billboard e
Jeff recebeu uma indicação como Melhor Revelação
do Ano no MTV Music Vídeo Awards. Já a Academia
Norte-Americana do Grammy deixou a estréia de Buckley
passar em branco sem indicações ao prêmio
em 1995.
A aversão de Buckley à mídia contribui
bastante para seu sucesso em meios apenas mais intelectualizados.
Mas, ainda em 1995, a revista People incluiu Buckley na
sua lista dos “50 Mais Bonitos do Ano” na qual
Jeff figurou no 12º lugar e não gostou nada
de aparecer mais por sua beleza do que por seu trabalho.
Realmente muitos se perguntavam de “quem era o novo
rostinho bonito” em uma revista de tiragem popular.
Enquanto isso Buckley e a banda iam e voltavam dos Estados
Unidos, se apresentando também na Austrália
onde Jeff conquistou elogios de seus ídolos do Led
Zeppelin, Plant e Page, que ficaram impressionados com a
performance de Buckley.
O ano de 1996 seria marcado principalmente pela turnê
solo “fantasma” de Buckley que começou
apenas em dezembro daquele ano. Sem avisos prévios
de show, Buckley viajou pela América se apresentando
tradicionalmente em pubs e cafés como sempre fizera
no início da carreira, mas usando pseudônimos
pitorescos como Martha & the Nicotines (me pergunto
quem figurava como Martha), Father Demo, Smackcrobiotic,
Crackrobats, Topless America, The Halfspeeds, Possessed
by Elves (meu favorito...), dentre outros. A justificativa
de Buckley era previsível: declarou não resistir
àquele estilo de apresentação, no anonimato,
sem pressões e cobranças: “Nessa situação
eu tenho aquele precioso e insubstituível luxo de
falha, risco, entrega. Eu adorava isso. Apenas estou reivindicando
de volta”. Além desta turnê – que
se estenderia pelo ano de 1997 – Jeff conduziu uma
entrevista com Nusrat Fateh Ali Khan publicada logo em janeiro
de 1996 pela revista Interview. Num estilo bem
despojado de conversa, Jeff partilhava coincidências
com Nusrat, como a herança musical paterna –
Nusrat também é filho de um importante músico
– além de perguntar sobre a vida, trajetória
e a própria essência da música qawwali
que, Jeff confessou, salvou sua vida quando estava em depressão.
A nota de abertura do álbum “The Supreme Collection”
é escrita por Buckley. Infelizmente o álbum
só vem a ser lançado em agosto daquele ano,
após sua morte.
“Grace” vendeu cerca de 300.000 cópias
e isso não satisfez as expectativas comercias da
Columbia. Logo, as pressões da gravadora sobre o
segundo álbum de Jeff orientaram seu trabalho para
um lado mais comercial. Tom Verlaine, fundador do Television,
estava escalado para produzir o álbum, mas pulou
fora do projeto após Jeff não gostar das canções
que já haviam sido gravadas pelos dois. Nesta época
Buckley já residia fixamente em Memphis, e na primavera
de 1997 levou sua banda para lá, onde começariam
a trabalhar no novo álbum, enquanto Jeff fazia suas
apresentações solo pelos pubs da cidade; a
última foi na noite do dia 26 de maio, mesma noite
em que teria admitido sofrer de desordem bi-polar –
maníaco-depressivo.
Na noite do dia 29, Jeff se reuniria com sua banda para
começar as gravações das novas canções.
Junto com seu amigo Keith Foti, estavam indo de carro para
o local do encontro, quando Jeff decidiu parar antes no
Porto de Memphis, às margens do rio Mississipi, para
nadar. Keith ficou sentado às margens com um estéreo
portátil que tocava “Whole Lotta Love”
do Led Zeppelin, enquanto Buckley nadava e cantava junto
com a canção. Keith disse que após
um barco-reboque passar, foi guardar o aparelho de som no
carro, para não ser molhado pelas ondas. Quando retornou,
não viu mais sinal de Buckley e o chamou por mais
de dez minutos. Sem resultados, avisou à polícia,
que começou buscas pela região. Eram cerca
de 4 horas da manhã quando um navio de passageiros
chamado American Queen avistou o corpo de Buckley e o rebocou
até às margens do Wolf River, afluente do
Mississipi, exatamente no fim da rua Beale, o lendário
berço do Blues. Porém, a polícia só
encontrou o corpo no dia 4 de Junho: Jeff foi identificado
por seu piercing no umbigo.
Jeff morreu aos 30 anos de idade, semelhança misteriosa
com a idade de falecimento do seu pai, 28 anos. A autópsia
não identificou sinais de qualquer droga no corpo
de Jeff mas as suspeitas de que tenha cometido suicídio
não são descartadas, levando em conta a declaração
de Jeff pouco antes de morrer de que sofria de depressão
e principalmente por ter entrado no rio completamente vestido,
calçando botas pesadas. Para quem conhece à
obra de Buckley e principalmente sua apreciação
pelo qawwali – uma música de sofrimento –
é impossível não fazer paralelismos,
como o trecho intrigante de “Grace”: “And
I feel them drown my name/ So easy to know and forget with
this kiss/ I'm not afraid to go but it goes so slow...”.
Logo, não é nada absurda a hipótese
de suicídio, apesar da perícia ter concluído
a causa da morte como afogamento acidental.
Em 1998 a Columbia lançaria o álbum póstumo
no qual Jeff trabalhava em Memphis. “Sketches For
My Sweet Heart The Drunk”, álbum duplo no qual
o primeiro disco contém as canções
feitas com Tom Verlaine e que Buckley rejeitou, e o segundo,
as músicas na qual Buckley trabalhava antes de morrer,
apresentando um experimentalismo avançado e que lembra
mais ainda as influências de Led Zeppelin. Jeff recebeu
uma ridícula indicação póstuma
“de remorso” do Grammy para Melhor Performance
Vocal Masculina em Rock por “Everbody Here Wants You”
– detalhe: a canção é uma balada
com influências bem sobrepostas de R&B. Ao longo
dos anos seguintes, os fãs de Buckley foram desenterrando
canções ao vivo, covers, colaborações
e b-sides que formam o precioso e escasso legado de Jeff.
Em maio de 2000 são lançados o álbum
“Mistery White Boy”, que mais do que capturar
Buckley em apresentações ao vivo, compila
momentos de interpretação marcantes, e o DVD
“Live In Chicago” no qual aparece mais detalhes
da vida de Buckley, como Mary Guibert, que co-produziu com
Michael Tighe “Mistery White Boy”, com declarações
sobre o filho. Nos anos seguintes seriam lançados
“Songs To No One” (2002), mais trabalhos ao
vivo e EPs, sendo o mais recente lançamento “Grace
Legacy Edition”, uma edição especial
de 10 anos de aniversário do álbum.
Completando quase uma década de seu falecimento,
Jeff Buckley ainda permanece presente tanto pelos lançamentos
póstumos quanto à gratidão de importantíssimos
artistas que atravessaram a década de 90 sob a influência
de Buckley: Thom Yorke deve seu falsete às influências
do vocal de Jeff e o Coldplay também se baseou em
seu trabalho. Jeff também ganhou várias canções
tributo como “Memphis” de PJ Harvey, “Memphis
SkyLine” de Rufus Rainwright, “Bandstand in
the Sky” de Pete Yorn, “Just Like Anyone”
de Aimee Mann e "Trying Not to Think About It"
de Juliana Hatfield.
Apesar da brevidade de sua carreira, é sempre revelador
e instigante encontrar antigos e novos trabalhos de Jeff
Buckley. Como Bob Dylan disse: “Jeff Buckley é
algo para se descobrir aos poucos e intensamente”.