John Frusciante
teve uma divina diarréia criativa em 2004 e começou
a gravar discos como se fosse um coelho parindo filhotes:
foram, no total, SEIS álbuns. E a boa nova é:
o material é todo de primeira e merece uma exploração.
Frusciante, que é para quase todo mundo só
o guitarrista dos Red Hot Chilli Peppers, demonstra cada
vez mais que tem uma carreira-solo que parece muito mais
importante para sua vida do que a música que faz
com sua banda principal: é nos seus discos-solo que
ele põe toda sua energia, toda sua alma, todo seu
imenso talento, acabando por criar uma música extremamente
pessoal e vigorosa.
Frusciante esteve no inferno
e retornou. Flertou com a morte por anos e anos, abusando
pesado nas drogas, injetando fortunas veia adentro, atingindo
os abismos mais profundos da depressão, adotando
a auto-destruição como modelo de vida... Esse
cara tinha tudo para já estar morto e já ter
se tranformado em mais um mito do rock’n roll que
seguiu à risca, depois de Sid Vicious, Ian Curtis
e Kurt Cobain, o preceito live fast, die young. Mas fez
mais que isso: sobreviveu. Frusciante conseguiu renascer
das cinzas e trouxe para nós, dessa sua caminhada
sombria e intensa pela vida, algumas lições
de sabedoria. Encontrou a salvação na Arte
e hoje há poucos artistas na música pop que
façam uma música tão poderosa e tão
tocante quanto a dele.
Ainda acho que sua obra-prima
é o Shadows Collide With People, disco ao mesmo tempo
épico e trágico, dolorido e viajante, como
que um Macbeth da música pop. Mas Curtains, último
álbum da enxurrada, finalizado em dezembro de 2004,
é também excelente, um dos álbuns mais
peculiares na discografia de John e certamente um dos mais
belos. Mais humilde e quietista, o álbum investe
num certo clima intimista e acústico, em que os violões
e pianos tomam o lugar das guitarras e os vocais estão
muito mais nítidos e em primeiro-plano. Surge por
aqui uma forma nova de melancolia, uma nova e devastadora
maneira que Frusciante encontra para transformar a tristeza
mais terrível numa indescritível forma de
beleza.
Sim, Curtains é um
disco extremamente melancólico e não muito
recomendado para quem está flertando com o suicídio
ou precisando melhorar o astral. Quem ousar penetrar nesse
universo, porém, vai acabar percebendo que por trás
de tudo não há nada parecido com derrotismo
ou apatia: Frusciante, hoje mais do que nunca, diz um imenso
“sim” à vida, e essa mistura de afirmação
vital e de doce melancolia é o que faz o charme e
a força de Curtains. Confesso que esse álbum
é capaz de arrancar cachoeiras dos meus olhos mais
que qualquer outro disco da história da música
pop que eu conheça: mais que o Closer ou o Unknown
Pleasures, mais que o Tidal, mais que o Songs of Love and
Hate, mais que o Ok Computer ou o Hail To The Thief...
Sei: os que seguem a religião
do prazer à qualquer preço podem argumentar
que arrancar lágrimas de alguém nunca foi
parâmetro pra julgar o valor de nada, muito pelo contrário:
"se te faz chorar, por que seria bom?" É
que me acontece às vezes o desejo estranho de ser
tomado por sentimentos intensos, algo que escape desse esquema
banal de diversões e futilidades... E por vezes chorar
é uma delícia, uma purificação:
é como uma divina água que corre de dentro
pra fora, levando consigo algo como demônios e pesares
diluídos, deixando atrás de si somente leveza
e tranquilidade.
A base de Curtains é
John Frusciante largado no chão de seu quarto com
um violão e um gravador de quatro canais, cantando
melhor do que nunca, sem medo de gritar sem a companhia
do barulho, furando o silêncio com o punhal da sua
garganta... Depois se ornamentou esse esqueleto de violão
e voz com pianos, solos de guitarra e efeitos eletrônicos,
o que não impede que esse seja o álbum mais
despojado e acústico da carreira do cara. Seu talento
como músico, que os seus dois primeiros álbuns
solo colocavam em dúvida (eles não passam
de loucuras sônicas de um junkie), está evidente,
por exemplo, no excelente solo de violão que termina
"The Past Recedes" ou nos guitarrismos catárticos
que são o clímax de "Anne". Seu
talento como poeta brilha em quase todos os seus versos
- que prosseguem sombrios e misteriosos.
Curtains é provavelmente
o disco em que John se mostra mais sereno, mais autêntico,
mais "ele mesmo", sem nenhum sinal perceptível
de pose, imitação ou cinismo. Eis um cara
que me ensinou algo que eu não posso deixar de considerar
como uma sabedoria de vida, e que parece consistir no seguinte:
ao invés da repressão das angústias
e da insistência nos sorrisos artificiais, prefere
expressar tudo que vai dentro do seu coração.
Quando tem raiva, grita como um doido, até passar.
Quando está melancólico, canta a mais melancólica
das canções. Parou de lutar contra a tristeza:
se satisfaz em expressá-la, e se salva dela através
dessa expressão.
Lembro de ter lido em algum
livro de filosofia, já não me lembro qual,
a seguinte anedota: o mestre budista pergunta pra seu discípulo
o que deve fazer o Iluminado quando recebe uma paulada na
cabeça. O discípulo diz: “Não
deve se abalar, deve suportar a dor, calar o grito que quer
fugir-lhe da garganta, se resignar ao seu destino, aceitar
o sofrimento que é inerente à existência
humana etc...”. O mestre discorda: “Mas não,
ficar reprimindo a expressão do sofrimento não
é aceitar o sofrimento... O Iluminado, quando recebe
uma paulada, faz isso: berra de dor! Aceitar a vida como
ela é significa aceitar o sofrimento, aceitar a nossa
vontade de protestar contra ele, aceitar gritar de dor quando
sentimos dor!”
Frusciante me deu uma lição
parecida: não conseguimos ser felizes porque fingimos
ser alegres o tempo inteiro e andamos pelo mundo com um
sorriso falso na cara e sempre respondendo “tudo bem”
a todos “como vai?”, mesmo que esse “tudo
bem” seja sempre uma mentira deslavada e esse sorriso
somente uma máscara para a nossa angústia...
Não ousamos botar pra fora todos os maus sentimentos
que, por ficarem no interior, meio reprimidos e inexpressados,
nos bloqueiam o caminho para uma felicidade mais verdadeira,
para uma existência mais genuína. Expressar
é exteriorizar. Aquele que só exterioriza
alegria e clarões, deixa dentro de si justamente
aquele material que deveria ser lançado fora... Não
sei se sei me explicar bem. Mas acho que está aí
a chave para entender porquê a arte de Frusciante
é tão fascinante e pode ser tão importante,
existencialmente falando.
Frusciante espalha
versos extremamente soturnos por todo o disco ("Life
is soooo saaaad!", chora em “Leap Your Bar”;
"I see the hope running low. We never found our way
home. There is no hope, there are no dreams", canta
na desolada "Hope"), mas acaba soando em estado
de extrema elevação, talvez dotado de uma
felicidade muito mais pura do que aquela que podem conseguir
aqueles cujo único serviço na vida é
fingir que são alegres o tempo inteiro. "I'm
ascending endlessly and I don't even have to try",
canta no refrão de "Ascension", e não
se trata de simples jogo poético. Qualquer um que
ouça Curtains com o coração aberto
vai ficar com a impressão de que Frusciante realmente
está subindo e subindo e subindo, o mais improvável
dos Ícaros, montado nas asas da angústia,
rumo ao céu na Terra: I-lu-mi-na-do!...
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