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Review: Rock Action
avaliação:
Para quem não conhece o som do grupo escocês Mogwai, a homenagem à Iggy Pop (“I’m gonna get satisfaction/I’m gonna get rock action!”) que a banda fez no título de seu último disco pode ser um indício de que trata-se de um representante da safra surgida no fim dos anos 90 que revitalizou a vertente mais clássica do rock, como o Hellacopters ou o Nebula.

Ledo engano: o Mogwai não faz um som parecido nem de longe com o das bandas citadas, e pouco assemelha-se com tudo que você já ouviu antes. A referência mais próxima que podemos dar é o Slint, banda que lançou dois discos excepcionais na virada dos anos 80 para os 90 e depois acabou, sem nunca ter ganhado a merecida atenção. Devido ao fato de fazer uma música bastante original e pouco comercial, sua influência ficou restrita ao círculo underground alternativo. Influência esta que hoje é reconhecida nas raízes musicais do Mogwai.

Mas os integrantes do Mogwai são músicos que possuem personalidade e um faro raro hoje em dia: as influências que a banda tem serviram unicamente como base para eles criarem sua sonoridade única e pessoal. Sonoridade esta que é resultado de pura inspiração, talento e êxito na incansável busca pela melodia, pela beleza através da música, não importa qual sentimento esteja por trás desta beleza. Os resultados são, não raramente, belas canções originais e irrotuláveis: músicas basicamente instrumentais (o Slint usava mais vocais), melodias etéreas muito bem construídas a partir de guitarras abstratas e atmosferas carregadas de melancolia, redenção. Abusando menos de microfonias do que o Slint e focado mais na sonância do que na dissonância, o Mogwai brilha ao construir sonoridades ora delicadas, ora caóticas, com transições arrepiantes de um estado a outro. É do tipo de som realmente difícil de descrever, e o mais próximo que eu já vi alguém chegar de uma boa descrição do Mogwai, em poucas palavras, veio da lista de discussão da Dying Days. Alguém (eu não lembro quem foi - perdoe-me!) de lá disse certa vez, mais ou menos nessas palavras: “Se as estrelas tivessem som, seria a música do Mogwai”.

O Mogwai lapidou esse estilo próprio ao longo de seus três lançamentos anteriores (considerando a coletânea de b-sides “Ten Rapid” como parte desta evolução), mantendo sempre as características citadas acima como fios condutores de seus discos, e variando pouco em cima disso. Mas como toda grande banda que se preze, em “Rock Action”, lançado em 2001, o grupo deu um passo à frente e desenvolveu sua musicalidade sem mudar seu estilo.

Na verdade, a palavra “retoques” se encaixa melhor do que “mudanças”. Nada muito contundente, mas sensível aos ouvidos de quem já ouviu os discos anteriores com atenção. Sabiamente, os escoceses adicionaram alguns elementos que vieram a enriquecer sua singular característica, evidenciando com isso ainda mais suas virtudes. Em outras palavras: melhoraram o que já era excepcional, e continuam únicos. O Mogwai se apresentou bastante mundo afora, conheceu coisas novas, amadureceu, agregou mais influências e lançou uma obra atemporal, curta e fascinante. Oito faixas que ocupam menos de 40 minutos, mas que extrapolam esse limite de tempo e exprimem infinidades para os mais sensitivos. Basta identificar-se e, mais do que ouvir simplesmente, sentir a música.

É um disco mais bem acabado e eclético (no bom sentido) se comparado com seus antecessores, e que ainda por cima também vem a ser o ponto culminante das virtudes originais da banda. O grupo corria o sério risco de começar a repetir-se, mas com maestria escapou da armadilha e nos presenteou com uma obra-prima, absoluta em seu poder de encantamento sobre aqueles que gostam simplesmente de boa música, livre de rótulos e clichês.

Feitas essas considerações, podemos começar a falar sobre o disco em si. Desenvolvendo um pouco mais a pista dada nos dois últimos parágrafos, “Rock Action” é levemente diferente de seus anteriores. Estão lá ainda as características gerais que formam o estilo da banda, mas é nos detalhes que os escoceses mostram sua evolução. Mudando assim o nosso foco e falando mais profundamente, podemos começar dizendo que a banda não está tão “guitar-driven” em “Rock Action”. Vários instrumentos fundem-se nos melhores momentos do disco, e a cozinha como um todo também está mais consistente e atuante. A guitarra condutora das sublimes melodias ainda é o grande destaque, mas a produção excepcional de Dave Fridmann soube trabalhar bem todos os instrumentos e ressaltar aquilo que cada um podia acrescentar de melhor na música do Mogwai. Efeitos eletrônicos também dão as caras de maneira mais coesa e, por fim, vocais aparecem aqui e ali de forma primorosa (Stuart Braithwaite, além de um guitarrista de muito feeling e criatividade, mostra-se um vocalista que no mínimo sabe encaixar sua voz de maneira perfeita em suas canções). O clima com o qual a banda costuma impregnar o ambiente está, no geral, mais denso. Mas também está em alguns momentos mais sutil, pois a banda aposta em algumas diferentes texturas e sai-se muito bem. Em linhas gerais, essa é a descrição mais técnica de “Rock Action”.

Mas vamos ao que interessa, as impressões pessoais das músicas que formam “Rock Action”.

A canção de abertura, “Sine Wave”, começa tênue com um teclado hipnotizante e vai ficando difusa à medida que nela vai agregando-se uma batida eletrônica pesada. A música vai se construindo gradualmente com a bateria chiando ao fundo, a guitarra levando a melodia, e o teclado fazendo coro de tudo à distância, enquanto a parte eletrônica vai ficando cada vez mais suja e confusa. Assim ela vai progredindo, e pouco tempo depois de nos darmos conta de que já estamos em meio a uma massa sonora claustrofóbica e abafada, a canção começa a morrer lentamente, tornando-se tênue do mesmo modo que começou e carregando em seus últimos momentos os ecos da anarquia sonora que se estabeleceu no clímax da canção.

Tendo apresentado seu cartão de visitas (e ter deixado junto o recado de que este não será um disco previsível), o Mogwai nos apresenta a primeira obra-prima do disco. “Take Me Somewhere Nice” começa de maneira plácida, com sua melodia suave dedilhada na guitarra e sua envolvente tristeza acentuada pelo teclado. É irresistível. Erguendo uma atmosfera cada vez mais aconchegante, a canção convida-nos a fechar os olhos e embarcar em uma jornada onde a melancolia nos acompanhará até o fim, mas a uma distância segura o suficiente que permite enternecernos e criar inevitáveis laços de identificação com a pergunta que não cessa ao longo da música: “What was that for? What was that for?”. Stuart canta quase sussurrando, tendo a participação ilustre de David Pajo (ex-Slint, atualmente no Zwan de Billy Corgan) nos backing vocals. A canção é brilhante ao juntar as mãos dessas duas características a princípio tão distintas, a serenidade e a tristeza, de maneira tão branda e cúmplice. Parece ser a trilha sonora perfeita para aqueles que já estão conformados com os dissabores da vida, que convivem com isso sobriamente e que, a esta altura de suas vidas, não temem mais o que o título da música sugere. “Ghosts in the photograph never lied to me”, confidencia Stuart em tom de álibi definitivo para a sua verdade, logo no primeiro refrão. O resto da canção é puro desdobramento, sereno e inapelável. Uma canção simplesmente mágica, onde o Mogwai dá um show de harmonia e mostra sua incrível capacidade de criar músicas sensíveis e de rara beleza, onde as emoções fluem naturalmente da letra, da guitarra, do teclado, tudo misturado instrinsecamente.

Após o primeiro grande momento do disco, uma pequena vinheta para retomar o fôlego. Nos poucos segundos de “O I Sleep”, Stuart continua instigando sua angústia: “I wanted to see if fire would burn me”, canta ele sob um piano clássico. Soa como um pequeno posfácio para “Take Me Somewhere Nice”.

O Mogwai continua convertendo sua inspiração em arte na quarta faixa. “Dial: Revenge” começa dedilhada no violão, e é o momento mais surpreendente do disco. Logo entra o vocal duplo de Gruff Rhys (líder do Super Furry Animals) cantando em galês, o que traz todo um clima especial de canção folclórica. Uma música redonda e inteligente, de extremo bom gosto, capaz de inspirar qualquer pessoa, vinda de qualquer cultura e/ou parte do mundo. A guitarra solando distraidamente sobre a base de violão e o belíssimo refrão amenizam um pouco o clima, pavimentando o caminho para o momento mais monumental do disco.

Este momento chama-se “You Don’t Know Jesus”. Começa alheia e distante através de uma guitarra sombria, que logo acorda de vez com a entrada da bateria alta e marcante. Uma outra guitarra, cinzenta e lamuriante, começa a ecoar ao fundo, juntando-se ao conjunto e empurrando o crescente da música. De repente a bateria torna-se urgente com seus pratos trovejando incansavelmente, e a tensão que ameaçava desde o início instala-se de vez. Soturno e belo em seu desespero caótico (mas contido), traduzido através de alguns ruídos e muita melodia, este é o momento épico do disco, que logo após ter sua tensão dissipada, vai novamente se desfazendo lentamente. A intensidade agonizante dá a vez a um epílogo longínquo e perdido que se estende por algum tempo. Morre de vez enquanto a guitarra clama as últimas notas: a banda usa uma vez mais de maneira perfeita o seu recurso preferido, a calmaria após a tempestade, a serenidade após o desespero. E vice-versa.

“Robot Chant” é mais uma vinheta. Algo que se assemelha a uma metralhadora toma de assalto o ambiente e cessa logo a seguir.

O que vem depois é mais uma pérola, que quebra o clima obscuro e amedrontador que fora intensificado pela vinheta anterior, e alterna novamente o estado de espírito do ouvinte. Com a introdução feita por um riff cativante, “2 Rights Make 1 Wrong” funciona como uma espécie de apelo esperançoso pujante após os momentos anteriores. Essa faixa sugere que cada canção de “Rock Action” é melhor do que sua antecessora, e que o sentimento dessa última deve ser substituído pelo sentimento atual, pelo resto de nossas vidas (ou pelo menos até a próxima música). Uma autêntica renovação de espírito é o que opera “2 Rights Make 1 Wrong” sobre o ouvinte, com sua batida empolgante e harmonia colorida. Mas claro que não é do tipo de felicidade boba: o Mogwai sabe exatamente a medida de alegria que pode nos doar, para que o clima do álbum não mude tão drasticamente. Talvez se ouvida separada do resto do disco, a música nem soe dessa maneira, mas no contexto do álbum, ela é perfeita. Soa como um tranquilo amanhecer ensolarado em uma casa de campo. Tudo ao redor ainda está marcado por alguns dias seguidos de tempestade intensa, mas isso não faz diferença: é um amanhecer que radia esperança e nos promete um dia de descanso despreocupado e feliz. A tempestade pode voltar a qualquer momento, mas estaremos renovados para suportá-la, sabedores sempre de que novos amanheceres ensolarados virão. É também a canção mais longa do disco, e em seus quase 10 minutos, desfila elementos como truques eletrônicos variados, uma guitarrinha country que parece vir do nada (mas que não poderia estar em nenhum outro lugar senão ali), teclado bastante presente, vocais femininos cheios de efeitos, e novamente aquele desenrolar mágico que nos faz instintivamente fechar os olhos e embarcar em nova viagem. É encantadora em seu ciclismo desordenado e feliz, mas trágica em seu desfecho súbito: o Mogwai, impaciente com a nossa ousadia em ficar contentes, parece nos privar bruscamente de “2 Rights Makes 1 Wrong”, e nos faz voltar à realidade...

Desaba novamente a tempestade: “Secret Pint”, a canção que fecha “Rock Action”, reestabalece sem cerimônias o clima soturno, mas de maneira eclética: percussão fria e ritmada, cordas beirando a morbidez e um piano lúgubre fazem a entrada mais nebulosa do disco. A música segue amarga, alternando os instrumentos e o vocal de Stuart: “Tried my best/ Failed the test/ Did my worst/ Came in first”. A seguir, um majestoso teclado substituirá o vocal, instaurando uma atmosfera meio oriental por alguns segundos. Stuart volta para o último verso, enquanto o piano sólido e inconsolável segue ao lado das cordas e percussão, até a música se extinguir em fade-out, junto ao disco.

O que mais dizer? Uma obra-prima magnética e arrebatadora, que deve ser apreciada calmamente, com alma e coração, canção por canção, momento por momento. Um caleidoscópio encantador de emoções e sensações, criado por uma banda extremamente talentosa em seu momento mais maduro e inspirado. Muito provavelmente o disco definitivo do Mogwai, e um dos discos definitivos de nossas vidas.

Fabrício Boppré
out/2002