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É sempre uma
tarefa delicada falar de um novo disco do Pearl Jam,
pois são sempre muitas variáveis envolvidas,
muitas expectativas, muitas comparações
com o que eles já fizeram antes, muitas questões
relacionadas ao fato deles serem a banda de Seattle
mais bem sucedida, etc. E também tem figura de
Eddie Vedder por si só, personagem já
integrado à mitologia do rock, por diversos motivos. |
"Riot Act"
saiu no fim de 2002 (é o sétimo disco de estúdio
do Pearl Jam), e eu já li e ouvi as opiniões
mais diversas sobre ele. Aliás, essa reação
do público já se tornou um desdobramento natural
pós-lançamentos da banda, pois vem sendo assim
desde o terceiro disco, "Vitalogy": as opiniões
são sempre bem segmentadas entre os que gostaram
muito (geralmente os fanáticos pela banda), os que
acharam ruim (por parte daqueles que estão sempre
à espera de um novo "Ten"), e entre esses
dois extremos está a maioria, aqueles cujas opiniões
são pequenas variações da idéia
de que o disco é bom mas nada de espetacular (esses
são formados na maioria das vezes pela "crítica
especializada" e pelos outros indivíduos não
contemplados nesses três grupos já citados,
ou seja, os "imparciais"). Uma idéia recorrente
que dita mais ou menos esse sentimento do último
grupo (e "Riot Act" não escapou dessa regrinha
aí em cima) foi muito bem sintetizada pelo Alexandre,
na nossa lista de discussão: "o Pearl Jam é
o cachorro que perdeu os dentes, não morde mais...
já não serve para cão de guarda, mas
é um bom companheiro...".
"Riot Act" é
um bom disco. Ninguém perde seu talento e sua criatividade
de uma hora para outra, e com Eddie Vedder, Matt Cameron,
Mike McCready, Jeff Ament e Stone Gossard não foi diferente.
Eles estão apenas mais contidos, mais cientes do que
querem e podem com sua música. Trilhando o caminho
que a banda parece ter estabelecido para si mesma após
o fim do auê em cima de Seattle, o Pearl Jam não
quer mais ser um gigante, não quer estar em evidência
a cada passo que der, não tem mais grandes pretensões.
Parece que a banda se contenta em ir lançando seus
discos e agradando sempre àqueles que se identificam
com sua filosofia, deixando para trás sem arrependimentos
os falsos fãs e as situações de outrora.
Ah, e claro, que se dane a crítica. Fazendo questão
de manter sua integridade e sua liberdade de fazer música
a seu jeito, o Pearl Jam segue em frente, doa a quem doer,
e "Riot Act" é mais um capítulo dessa
jornada.
Musicalmente falando, podemos
introduzir o novo disco traçando paralelos com a discografia
do grupo. Esse artifício funciona muito bem para aqueles
que têm intimidade com os trabalhos anteriores, já
que, enquanto vamos ouvindo "Riot Act", notamos
facilmente diversos elementos diluídos ao longo das
músicas que nos fazem lembrar de discos como "Yield",
"No Code" e até do "Vs". A banda
não chega a se repetir, mas isso reforça novamente
a impressão de que a pretensão musical do Pearl
Jam agora não alça vôos muito altos. Não
vou entrar no mérito da discussão "evoluir
X não evoluir" (usando "evoluir" no
sentido que a maioria das pessoas erroneamente atribui a essa
palavra: apresentar mudanças), apenas vou me limitar
a dizer que "Riot Act" é do tipo de disco
que põe por terra aquela idéia de que um disco,
se não mostra nenhuma evolução mais contundente
com relação aos trabalhos anteriores, não
pode ser bom. Mudanças significativas e novas sonoridades
não são obrigatórias: honestidade e talento
são sempre, independente disso resultar em mudanças
ou não.
Seguindo essa premissa, podemos
começar não-situando o disco: para a decepção
dos saudosos dos velhos tempos, sedentos por peso e Eddie
Vedder pulando alucinadamente nos shows, "Riot Act"
não tem a densidade sufocante de "Ten", não
tem o peso e a overdose de guitarras de "Vs" e muito
menos a urgência de "Vitalogy". A banda continua
se distanciando de tudo isso em "Riot Act", que
possui todo um clima de gravações relaxadas,
músicas mais espontâneas e instrumental mais
sujo. Em suma, "Riot Act" é uma continuação
natural do que a banda vem fazendo a partir de "Vitalogy",
respeitando sempre a opção de não se
expor mais tanto quanto antigamente. Ouvem-se sim muitos ecos
de "No Code" e "Yield", os discos que
fizeram muita gente mudar o seu conceito sobre o Pearl Jam,
para o bem ou para o mal. Algumas guitarras rasgadas aqui
e ali podem até lembrar o "Vs", mas isso
não é algo que a banda tenha abandonado por
completo em nenhum dos discos mais recentes. E para aqueles
que tinham medo de que "Binaural", certamente o
trabalho menos inspirado do grupo, indicasse que o fôlego
estava acabando, "Riot Act" veio na hora certa apagar
esta impressão. O disco é mais coeso do que
se antecessor e apresenta vários momentos realmente
excelentes.
Aprofundando um pouco mais:
a primeira metade de "Riot Act" é muito boa,
já a segunda não segue o mesmo ritmo, mas não
compromete. O Pearl Jam esbanja maturidade, com as letras
de Eddie Vedder sempre um nível acima da média
e a autoria das composições mais bem distribuídas
entre os 5 músicos (dando continuidade a uma tendência
mais explícita de "Binaural"). A seção
instrumental continua mais contida e "na manha",
sem muitos espaços para investidas mais eloqüentes
por parte dos guitarristas Stone Gossard e Mike McCready (como
antigamente), mas sempre correta e inflada de feeling, aquilo
que sempre foi o forte do Pearl Jam ao meu ver. Outro sinal
dos tempos muito bem vindo é a produção
excepcional, que equilibrou muito bem todos os elementos gravados,
além de preservar uma certa vivacidade das guitarras
que geralmente é limada em produções
muito cuidadosas e cristalinas. A banda soa muito à
vontade, bem entrosada (Matt Cameron está definitivamente
integrado) e até com um certo ar garageiro em algumas
faixas. Finalmente, vamos às músicas:
"Can’t Keep" abre
"Riot Act" muito bem, com bateria marcada e guitarras
sombrias se estendendo desconexamente enquanto Vedder canta
em círculos que sempre chegam em "you can’t keep
me here". Uma canção simples e que parece
que vai explodir a qualquer momento, o que não acontece:
a banda segura o ímpeto e o faz bem, lembrando a abertura
de "No Code". "Can’t Keep" em si lembra
os melhores momentos de "Binaural", em músicas
como "Sleight of Hand", "Nothing as it Seems"
e "Parting Ways", onde a banda explorou texturas
mais nebulosas e saiu-se bem. "Save you" vem a seguir
e levanta o clima, com a dupla de guitarras disparando riffs
e solos bastante bacanas, acompanhados do teclado de Boom
Gaspar (Adam Kasper, que produz o disco, também contribui
tocando piano em outras faixas). O refrão é
chicletudo, a animação é contagiante
e a música vem permeada por uma camada leve de sujeira
que ressalta o seu valor. Nada que vá entrar para a
história, mas esse não é mais o objetivo
do Pearl Jam mesmo.... essas duas músicas formam uma
boa abertura de "Riot Act" e dão o tom de
como o disco irá desenrolar-se.
"Love Boat Captain"
segue a linha lírica manjada de "love is everything"
(que na versão Vedderniana, virou "All you need
is love", uma variação não muito
inspirada, temos que admitir). Ele mesmo admite na música
que "It's already been sung" e desculpa-se a seguir
dizendo que "but it can't be said enough". Parece
atualmente que toda banda gosta de ter pelo menos uma música
em que declara o quão importante é o tal do
"love", não em nível de relacionamento
entre duas pessoas, mas em um sentido maior, mais humanitário.
Bastante sintomático isso... mas voltando à
música, ela tem uma estrutura "crescente"
interessante, com teclados novamente bem presentes, e acaba
funcionando legal. De novo nos remete a um disco anterior
da banda: "Love Boat Captain" se encaixaria muito
bem em "Yield".
A quarta faixa, "Cropduster"
é excelente, uma música muito inspirada e bem
acabada, com melodia, guitarras, vocal, tudo encaixadinho
perfeito. Uma pérola rock ´n´ roll espertíssima,
onde a banda toda acerta em cheio a mão. "Ghost",
que vem a seguir, é emblemática. A música
no geral é legal e segue muito bem até o refrão,
quando aparecem uns backing vocals ("away, away")
que acabam botando tudo água abaixo. Mas é emblemática
porque muitas pessoas gostaram desse pequeno detalhe, enquanto
que para outras tantas ele realmente comprometeu a música!
Ouça e tire suas conclusões. Fora isso as guitarras
são novamente um show à parte, maciças
e empolgantes.
"I am Mine", o primeiro
single do álbum, é outra faixa bastante inspirada,
uma ode à importância de se conhecer. Novamente
a banda apresenta-se mais cautelosa sonoramente do que nos
velhos tempos, mas inunda a música com guitarras e
teclados que criam um clima circunspecto e sereno. Eddie canta
com muita propriedade ("I know I was born and i know
that I'll die, the in between is mine, I am mine") preenchendo
a canção com sua voz em tom de conselho e reflexão,
e o clima intimista, que desemboca em mais um refrão
memorável, remetendo a "Given to Fly". Um
dos pontos altos de "Riot Act".
Um violão amargurado
e devagar introduz "Thumbing my Way" após
o fim da pregação em prol do individualismo
de "I am Mine". Temos aqui uma baladinha muito bonita
e simples, pontuada por uma guitarra country muito bem encaixada
e tristeza tocante. Eddie Vedder canta cabisbaixo versos como
"I have not been home since you left long ago... I'm
thumbing my way back to heaven..." e mostra que sua habilidade
para compor canções desse tipo permanece afiada.
A música dá uma leve pisada na bola no finalzinho,
quando Eddie tenta encaixar um verso um pouco longo em um
trecho mais curto, e acaba acelerando um pouco seu vocal de
maneira torta... mas a música se redime logo a seguir
com a bateria mudando um pouco o ritmo e criando assim um
trechinho rápido mas muito bonito.
"You Are" é
o momento-experimental de "Riot Act". A música
possui uma sonoridade toda diferente, com guitarras quadradonas
e robóticas, e o resultado é apenas razoável.
"Get Right" vem a seguir trazendo de volta o rock
´n´ roll direto ao ponto. É curta e certeira,
lembrando bastante "Brain of JFK" com seu refrão
matador. Quase emendada no final de "Get Right"
inicia-se "Green Disease", a canção
mais surpreendente do disco. Com uma levada muito bem sacada,
acelerada e de melodia que pega instantaneamente, essa faixa
lembra muito "MFC". Curtinha e cativante, com guitarras,
baixo e bateria trabalhando juntos em perfeita sincronia em
prol da boa música. Sem dúvida, uma das melhores
músicas de 2002.
"Help Help" é
a décima primeira faixa e anuncia o pedaço mais
fraco de "Riot Act". A música começa
vacilante e demora para engrenar, parecendo não chegar
a lugar nenhum e ficando apenas no razoável. A faixa
seguinte, "Bushleaguer" começa com Eddie
cantando em tom de discurso. É bastante quebrada e
possui algumas mudanças de andamento interessantes,
mas também não chega a empolgar. Nem mesmo a
letra cheia de ironias e citações não
muito difíceis de entender e o bom refrão salvam
a música. E quando parece que o disco vai se perder
no finalzinho, vem "1/2 Full", novamente rock ´n´
roll visceral e guitarras no talo levantando o clima. Essa
faixa funciona como uma "Red Mosquito" parte 2,
tal a sua similaridade com a canção de "No
Code". Rockzão dos bons, guitarra solando direto
em primeiro plano, final apoteótico e barulhento. Sem
se esforçar muito a banda consegue ainda empolgar qualquer
um!
Antes do disco acabar, ainda
há tempo para uma faixa-vinheta sem sentido chamada
"Arc", o que já é tradicional no trabalho
do Pearl Jam. Dispensa maiores comentários (até
que eles caprichavam mais nessas coisas antigamente). E por
fim, "All or None" fecha "Riot Act" de
maneira sóbria e melancólica, leve e descompromissada.
Lembra o fim de "Vs" e "No Code", com
"Indifference" e "Around the Bend" respectivamente.
"Riot Act"
flui muito bem. Como já foi comentado, apesar das referências
todas acima, o disco não soa repetitivo. O conjunto
dessas músicas se encaixa de maneira natural e harmônica,
principalmente ao longo da primeira metade do álbum.
A banda pode até vir a, no futuro, lançar novamente
algo diferenciado, experimental, arrebatador, sei lá.
Mas aparentemente o Pearl Jam seguirá lançando
discos como "Riot Act": simples, sinceros, familiares
e com boas letras e boas guitarras. A agradável e confortante
companhia daquele fiel cão amigo de longa data. A grande
questão relacionada aos discos do Pearl Jam deverá
continuar sendo a expectativa que se cria em torno deles.
E a exemplo de "Riot Act", tendo-se em mente o que
se pode esperar desses 5 senhores, dificilmente sai-se arrependido.
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