Parece mentira, mas houve uma época onde as grandes
gravadoras lançavam trilhas sonoras com coerência
artística, aliando músicos de renome com uma
proposta sonora condizente com o filme. Longe da prática
atual de reunir um ou outro artista consagrado e mais uma
penca de ilustres desconhecidos, alguma trilhas sonoras conseguiram
agrupar músicas relevantes que muitas vezes deram o
ar de sua graça exclusivamente para aquele intento.
"Singles" saiu na hora certa, em
meio à explosão musical do início dos
anos 90. Veículos musicais a mil, as bandas alternativas
tomavam as paradas e as atenções do público,
movimentando dólares nunca antes cogitados pelas
gravadoras. O ex-funcionário da revista Rolling Stone,
então diretor de filmes, Cameron Crowe sentiu a oportunidade
e filmou uma comédia romântica tendo como pano
de fundo a efervescente cena de Seattle. Com uma história
bobinha e que pouco se relacionava com o que estava acontecendo
no momento (ao contrário do filme "Hype"
que depois viria a traçar um documento a respeito
do que ocorrera naqueles anos), Crowe foi esperto ao ponto
de convencer alguns artistas de expressão a fazer
pontinhas não-compremetedoras no filme, dando a impressão
ao espectador que as coisas estavam acontecendo com simultaneidade,
ajudando a saciar a ânsia por material que dali vinham.
Além disso, teve a iniciativa de filmar a cidade,
localizando as ocorrências do filme em parques, bares,
pubs, cafés, condomínios, portos, saciando
a curiosidade do espectador em torno de como era aquela
meca do rock. Por essa grande sacada, o filme acabou mostrando
os artistas em que todos estavam interessados naquele momento,
fazendo aparições inusitadas no decorrer da
película. Chris Cornell, Pearl Jam, Alice In Chains
aparecem como personagens secundários ou fazendo
trechos de performances. Lembro que fui assitir ao filme
no cinema Baltimore em uma chuvosa tarde de férias,
munido de minha camisa de flanela oficial.
Tamanha conexão entre artistas, diretor
e proposta do filme resultaram em uma trilha muito superior
ao resultado que o filme obteve. O CD reúne artistas
selecionados, mesmo sem contar com o grande nome do momento
(Nirvana), tocando faixas inéditas e exclusivas,
dando à trilha um embasamento ímpar. Ao invés
de reedições de canções antes
lançadas, de músicas deslocadas do tema ou
de qualquer porcaria de uma banda sem expressão,
oferece-se um retrato de uma época, obtido com o
aval dos que ali participaram. O Alice In Chains abre os
trabalhos com a então inédita "Would",
que roubou horas e horas de exibição da MTV
(naquele tempo ela era muito legal) e dava uma prévia
do que estaria em seu álbum subseqüente, o clássico
da época grunge "Dirt". O até hoje
queridão Pearl Jam meteu duas músicas na trilha.
"Breath" remetia aos tempos do álbum "Ten",
com aquele metal soft e melódico, soando até
um pouco ingênuo se comparado com músicas que
eles viriam a fazer no futuro (pensou em "Do The Evolution"?).
É deles também "State Of Love And Trust",
um clássico entre os fãs da banda que até
hoje figura em um ou outro show dos caras, com suas guitarras
mais pesadinhas e a empolgação do carismático
Ed Vedder. O vocalista do Soundgarden Chris Cornell aparece
com uma inusitada canção solo, uma balada
com cara de demo ao violão, mas que acabou tornando-se
sua melhor aventura fora do Soundgarden. Quem dera seu album
solo de 1999 tivesse herdado a mesma inspiração
que "Seasons" apresentou. Paul Westerberg entrega
as duas faixas pop do disco, provavelmente encomendadas
pelo diretor que precisava de um embalo alegrinho para as
desventuras românticas de Matt Dillon e Bridget Fonda.
Os Lovemongers fazem um cover ao vivo de "The Battle
Of Evermore" do Led Zeppelin e assumem o momento baixo
do disco. Uma canção dupla do já extinto
Mother Love Bone presta tributo ao falecido vocalista Andrew
Woods e induz o ouvinte a descobrir o que existia antes
do Pearl Jam. "Chloe Dancer/Crown Of Thorns" é
uma bela música ao piano, que constava também
em versão editada no álbum "Apple".
O peso pega com o Soundgarden e suja de vez com o Mudhoney.
O primeiro deixa sua contribuição de neo-Black
Sabbath e o segundo carimba o CD com a garageira que transformou
o grunge em uma febre. Bem sacada é a inclusão
de Jimi Hendrix, natural de Seattle e erroneamente dito
"pai" da cena (musicalmente ele não tinha
a menor relação com os pupilos, que viriam
a ser novamente apadrinhados por Neil Young). "May
This Be Love" traz um toque psicodélico-retrô.
Perto do final, os Screaming Trees colaboram com a melhor
música de sua carreira (que seria disponibilizada
em seu disco "Sweet Oblivion"), "Nearly Lost
You" é um hitzão que funciona até
os dias de hoje. As guitarras pesadonas e a voz rouca de
Mark Lanegan nunca soaram ao mesmo tempo tão perfeitamente
rock e tão inspiradas como nessa faixa. O disco fecha
a conta com "Drown", dos então emergentes
Smashing Pumpkins. A faixa é um clássico,
preferida de dez entre dez fãs do quarteto. As guitarras
em estilo sinfônico em contraste com as microfonias,
o frágil vocal de Billy Corgan, a produção
de Butch Vig eternizaram a música. Chave de ouro
para uma trilha respeitável.
Enquanto o filme utilizou de alguns esteriótipos
e sacadas hollyoodianas para padronizar uma cena para as
grandes massas, a trilha por sua vez serviu para oficializar
um número de artistas que, naquele momento, recebiam
todas as atenções do planeta. Unindo os interesses
comerciais da gravadora com o interesse do público,
a trilha de "Singles" mostrou ser possível
unir música e imagens de forma coerente e com credibilidade.
Empata com "Judgement Night" e "Lost Highway"
na minha lista de preferidos.