Você aí que viveu os anos 90
e acompanhou, ano a ano, a ascensão do grunge e das bandas
"alternativas", rótulos que faziam de fato algum sentido na
época em que foram aplicados. Quando você pensa nesse período
e nas bandas que chegaram aos seus ouvidos, sua mente é tomada
por névoa, graxa, fuligem e sujeira, elementos expelidos pelas
guitarras carregadas de bandas como Nirvana, Alice In Chains
e Soundgarden. Dificilmente pode-se imaginar em meio a esse
panorama sombrio uma paisagem de girassóis, caleidoscópios,
parques de diversões, jardins multicoloridos e personagens
surreais, o que seria um grande antagonismo para o que chamava
a atenção do público e representava boas vendagens na época.
Pois acredite - no Texas existiu um conjunto de músicos que
insistiu em construir o seu universo particular em cima de
situações divertidas e coloridas, desafiando os caminhos naturais
da época com doses de bom humor e espírito de não se levar
a sério.
Tim Delaughter (voz), Wes Berggren
(guitarras), Mark Pirro (baixo) e Bryan Wakeland (bateria)
reuniram-se em Dallas, 1991, com a curiosa idéia de introduzir
elementos psicodélicos e incomuns ao rock feito na chamada
música "universitária" norte-americana, que na época caminhava
por meios independentes e era responsável pela veiculação
de inúmeras novas bandas que sobreviviam soterradas pelo pré-determinismo
da indústria musical convencional. Influenciados também pela
vasta gama de estilos que circundavam os ouvidos juvenis da
época, com múltiplas cenas produzindo os mais variados gêneros
musicais relacionados com o rock, a banda calcou suas composições
na tríade baixo-guitarra-bateria, sem uma regra específica,
abusando de ritmos inquietos e desconcertados. Conceitualmente,
introduziram um caráter bem-humorado às suas letras, assim
como a proposta visual da banda recorria à cores fortes e
vibrantes, distanciando-na da sisudez que caracterizava o
início dos anos 90. A boa repercussão de suas apresentações
na região, decoradas por projeções de slides e alusões a desenhos
animados e a inclusão de uma faixa na compilação da rádio
KDGE-FM refletiram em um interesse por parte da gravadora
local Dragon Street Records, que lançou seu primeiro disco,
"Bill" em 1992.
Berggren, Pirro, Delaughter e
Wakeland: mais uma banda na carona do grunge? |
Com a explosão
ocasionada por "Nevermind", do Nirvana, muitas bandas que
estavam na mesma condição que o quarteto passaram a ser analisadas
pelas grandes gravadoras, ávidas pela descoberta de novos
artistas que pudessem repetir o feito do trio de Seattle.
A incrível cruzada por novos talentos registrou um volume
imenso de novos CDs nas prateleiras das lojas, prontos para
saciar a ânsia de um público disposto a experimentar novos
artistas. Contratados pela multinacional Island, o álbum "Bill"
acabou relançado e remasterizado pela gravadora para clarear
um pouco mais o seu som e adaptá-lo ao mercado mainstream,
chegando às lojas em 1993 com uma faixa a menos do que em
sua edição original ("Green Tamborine", cover dos Lemon Pipers,
sofreu corte por questões legais). A exemplo das maiorias
das bandas da época, o Tripping Daisy recebeu o devido espaço
na MTV, que cumpria papel fundamental de veiculação na época,
o que lhe rendeu um bom reconhecimento em solo norte-americano,
embora sua popularidade fosse irrelevante na Europa. Tal exposição
era a prova de que a Island apostava pesado no retorno financeiro
que podia colher. Em ritmo de constantes lançamentos, lançou
em 1993 um EP chamado "Live: Get It On", com o objetivo de
contabilizar em cima da nova contratação e faturar alguns
dólares enquanto o quarteto não entregava um novo álbum. A
atitude, é claro, não vinha de encontro aos interesses artísticos
da banda.
O disco
seguinte, que pode ser encarado como a verdadeira estréia
da banda na nova gravadora, saiu em 1995. "I Am An Elastic
Firecracker" beneficiou-se dos ecos de boa vontade que o público
concedia às bandas do ultra-exposto grunge. Nesse grupo, outras
bandas como Superdrag, Dishwalla e Spacehog tiveram seus quinze
minutos de fama, graças à convalescência da MTV que exibia
vídeos de novos artistas à exaustão, alimentando a busca por
um "novo Nirvana". "Firecracker" fez um relativo sucesso nos
EUA graças à simpatia de vídeos divertidos como os das faixas
"I Got A Girl" e "Blown Away", que traduziam em cores e criatividade
a movimentação musical da época. O disco mostrou traços de
evolução significativos, tanto em termos de composição como
na maneira em que foi lapidado. Embora seja notável a preocupação
em adaptar as idéias da banda ao que podia ser facilmente
assimilado pelo público da época, há ali várias demonstrações
de criatividade e busca por uma identidade. Vendeu o suficiente
(250.000 cópias nos EUA) para garantir um novo álbum a eles,
mas representou para os Daisys mais um caso de queda de braço
entre artista e corporação. Os músicos quiseram tempo e liberdade
para experimentar, a gravadora exigiu um foco na construção
de hits certeiros, fossem quais fossem as técnicas empregadas.
Se essa
situação toda acabou rendendo ao Tripping Daisy a exposição
esperada, a introdução da banda no mercado acabou seguindo
o mesmo caminho de tantas outras que compartilharam da mesma
sorte. "I Got A Girl" tocou bem nas rádios e virou uma canção-marca
da banda, que no futuro representaria um fardo a carregar.
Erroneamente relacionados ao rótulo grunge, o som do quarteto
abusava dos riffs suingados de guitarras e das melodias aceleradas,
com fortes doses de pop explosivo e de influência do som dos
anos 60. Além disso, a voz característica de Tim e seus cabelos
coloridos renderam-lhe comparações Perry Farrel, vocalista
de um dos marcos do princípio dos anos 90, o Jane's Addiction.
O característico pàra-acelera-pàra de suas canções e algumas
eventuais incursões viajandonas não colaboraram muito para
que os Daisys arrancassem o estigma de clones da banda de
Farrel, complicando ainda mais a mobilização para conceder
ao Daisy um caráter genuíno que parecia se tornar necessário
naquele ponto onde o público separava o joio do trigo.
Essa combinação de fatores deixou-os soterrados ao lado de
tantas outras bandas que beneficiaram-se do momento, sofrendo
as primeiras negações do público que, saturado com os exageros
da indústria, já não via com bons olhos os novos trabalhos
oriundos de Seattle e das dezenas de bandas "alternativas"
que habitaram seus ouvidos. Para completar, o ritmo alucinado
de cinco anos nos estúdios e na estrada provocaram momentos
de acidez na relação entre os integrantes, levando ao ponto
máximo onde unem-se desconforto com o rumo artístico e idéias
sobre o fim dos trabalhos. Foi nesse ponto que o baterista
Wakeland deixa o Tripping Daisy, sendo substituído por Mitch
Marine. Após uma desgastante turnê "nonsense" com os jurássicos
Def-Leppard, a banda, fragmentada, decidiu entrar em férias,
período em que Tim conheceu o guitarrista Philip Karnats e
passou a tocar algumas músicas na casa do novo colega. A sintonia
entre os dois foi tamanha que, após alguns ensaios com a participação
de Berggren, Karnats foi convidado a integrar o Tripping Daisy.
Momentos antes deles entrarem num estúdio em Nova Iorque,
o baterista Marine foi chutado para fora e substituído por
um antigo amigo deles chamado Ben Curits.
Ao vivo o bicho pegava |
Enquanto
a banda trabalhava com o produtor Eric Drew Feldman (Frank
Black and the Catholics, Captain Beefheart, PJ Harvey) em
seu terceiro álbum, a Island lançou em 1997 um novo EP, "Time
Capsule", que compilava algumas faixas raras e lados-b de
singles europeus. Mudanças no mundo da indústria musical fizeram
com que alguns selos fossem adquiridos pela empresa de bebidas
Seagram, que fez uma lavagem no cast que controlava a Island
Records. Com novos gerentes na jogada, o Tripping Daisy passou
a ser o nome da vez na Island, um projeto que renderia justificativas
para que a Seagram não riscasse a Island de sua planilha (a
Seagram planejava aglutinar vários pequenos selos, enxutando
a corporação em um número limitado de companhias). De artistas
sufocados, eles passaram a receber liberdade total da gravadora,
que investiu verbas, fez concessões e, melhor, sequer levantou
o telefone para saber como as gravações andavam. Quando receberam
o resultado de Tim e cia., concluiram que naquele trabalho
tinham a galinha dos ovos de ouro (estipularam 500.000 cópias
vendidas até o final do ano).
Em
julho de 1998, saiu o disco que traduz a ironia que
cerca a história da banda: "Jesus Hits Like The Atom
Bomb". O álbum marca uma consagrada reviravolta no som
do agora quinteto, uma evolução surpreendente capaz
de alçar o disco à lista de melhores da década. Todos
os fatores que até então formavam o som da banda foram
desprendidos de qualquer pré-exigência por parte dos
executivos da sua gravadora e o conjunto, bem mais maduro
e auto-confiante, conseguiu atravessar a linha da consolidação
artística. |
Para sua informação:
tamos aí!
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Sem abrir
mão dos ritmos refrescantes e ensolarados, as canções passaram
a abordar temas mais introspectivos e incorporar arranjos
bem mais rebuscados e inteligentes, sem compromisso de obedecer
formatos. Longe de desmerecer seus discos anteriores, pode-se
afirmar que um novo Tripping Daisy, mais grandioso e respeitável
surgiu, onde se nota o quinteto soando uníssono, em perfeita
sintonia. A inclusão de outros instrumentos como os teclados,
piano e tuba tornaram a proposta de aproximar o poder sônico
ao saudosismo psicodélico sessentista uma aventura genuína
e o capricho nos múltiplos vocais trouxeram mais grandiosidade
ao produto final. Uma verdadeira trilha sonora para um passeio
sônico-psicodélico de final de década.
Mas o triunfo
artístico, apesar da consagração junto à midia e fãs,
não foi suficiente para garantir a manutenção dos Daisys em
sua gravadora. Por motivos mercadológicos, o grande disco
ficou aquém das vendagens esperadas, o que decretou o final
do contrato e colocou "Jesus Hits Like The Atom Bomb" na seleta
lista de "discos perfeitos que quase ninguém escutou". A banda
perdia a segurança e a infraestrutura que a grande indústria
lhe oferecia, mas ganhava, por outro lado, um novo mundo de
possibilidades a explorar.
Deste ponto
em diante, tudo que se relacionava a eles passou a interessar
apenas aos fãs, notavelmente aos que encontraram o cálice
sagrado em "Jesus Hits Like The Atom Bomb". De volta ao Texas,
trataram de juntar-se a velhos companheiros e admiradores
da banda para fundar um selo independente que lançaria os
futuros projetos que pretendiam fazer. Com um universo reduzido,
o selo Good Records deu sua guinada inicial ao lançar o raro
EP "The Tops Off Our Heads", 22 minutos comprimidos em uma
única faixa onde sete temas davam continuidade ao espírito
evocado no seu último álbum com a Island. O disco foi vendido
através do site oficial da banda em edição limitada, o que
deixava claro o desprendimento com o sucesso comercial e a
prioridade à excelência artística e à satisfação
pessoal de se fazer parte de uma banda de rock. O selo ainda
lançou dois outros títulos limitadíssimos, "We're Not Signed
EP" e um split com a banda texana Centro-matic. Nesse ritmo
de satisfação pessoal, o quinteto gravou uma série de faixas
para formar um novo álbum, o disco que representaria sua estréia
no novo selo, com lançamento marcado para novembro de 1999.
Na manhã de 28 de outubro de 1999, menos de um mês antes do
lançamento do novo álbum, o guitarrista Wes Berggren foi encontrado
morto em seu apartamento, vítima de uma overdose de cocaína.
Curiosamente, uma das principais causas de morte no meio musical
afetou a banda quando já não mais viviam a vida de rockstars.
Em dezembro, Tim anunciou que a ausência de Wes exauria as
forças para que eles continuassem, decretando assim o fim
das atividades do Tripping Daisy.
Wes, Curits, Tim, Karnats e Mark:
rolou aquela química, sabe? |
Mas o triste
ponto final da trajetória dividiu os sentimentos entre amargura
e esperança. A Good Records acabou lançando de forma independente
o disco em 2000, entitulado apenas "Tripping Daisy". As doze
faixas previstas foram acompanhadas de mais duas. "Community
Mantra", que abre o disco, foi a última gravação que os rapazes
fizeram em conjunto. Além disso, "Soothing Jubilee", que ficaria
de fora do disco, recebeu um tratamento final com a participação
do pai de Wes, Don Berggren, no comando de um Fender Rhodes.
Apesar das circunstâncias melancólicas acerca do disco, o
resultado final é uma continuação dos méritos de "Jesus Hits
Like The Atom Bomb", com toques ainda mais transcedentais,
possivelmente obtidos pela ausência de expectativas nos resultados
que o disco poderia alcançar. Esse disco hoje permanece esgotado,
sem previsão de reedição por parte da Good Records.
Com o fim
da banda, a Good Records passou a ser um dos focos de trabalho
de Tim e Mark, que agregaram uma loja de discos ao selo, com
o mesmo nome, localizada no Texas. Tim casou com sua namorada
de longa data, Julie Doyle e teve três filhos. Os discos da
banda estão hoje fora de catálogo, sendo que
alguns dos títulos já representam bons lucros
em sites de leilões online. Algum tempo depois, Tim
reuniu um novo projeto que encontra raízes no que fez sua
falecida banda: The Polyphonic Spree, uma mega banda pop,
continuou a espalhar o espírito alegre que Tim, Wes e Mark
carregaram pelos anos 90.
Vicente Moschetti
julho
/ 2004 |