Ao contrário do que nossos
avós defendem, às vezes podemos afirmar que
bons são os tempos cabulosos em que vivemos. A década
atual vem nos proporcionando inovações que,
na música, nos colocam em contato com uma infinidade
de material. Hoje, a explosão de bandas novas atropela
ouvintes, gravadoras e mídia. O Árcade Fire
pode ser considerado um caso ideal onde as circunstâncias
atuais colocaram uma banda nos computadores dos ouvintes
antes que qualquer gravadora de grande porte ou veículo
tradicional de mídia se desse conta. Quando os formadores
oficiais de opinião ouviram falar nos músicos,
eles já estavam lotando pequenos shows, suas músicas
já tinham cruzado continentes e eram a banda mais
escutada por muita gente.
O texano Win Butler cruzou a fronteira do Canadá
em 2000, encontrando Régine Chassagne numa performance
jazzística na Universidade de Concórdia, verão
de 2003. A família Chassagne havia abandonado o Haiti
na época em que o ditador François Duvalier
comandou o país, deslocando-se entre Estados Unidos
e, finalmente, Canadá. As primeiras músicas
passaram a surgir com a consolidação da dupla
que, com a ajuda de músicos da região, foram
desenvolvidas e eventualmente gravadas. Richard Parry integrou-se
à dupla gradualmente e, depois de oficialmente considerado
membro da banda que se formava, trouxe consigo Tim Kingsbury.
O quinteto foi completar-se com a chegada do irmão
mais novo de Win, Will Butler, também oriundo dos
EUA.
Quando o assunto
é basquete, eles são
excelentes músicos.
O nome da banda surgiu de uma
estória relatada a Win, onde uma casa de fliperama
teria incendiado, promovendo a morte de várias crianças.
Mesmo desconfiado da veracidade do conto, ele passou anos
acreditando nela. O primeiro registro do Arcade Fire saiu
nos meses seguintes, um EP auto-entitulado disponibilizado
pelos próprios membros e devidamente esgotado na
região. Em agosto, Win e Régine encaminharam
o inevitável: casaram-se e logo em seguida rumaram
em busca da consolidação de um álbum
de estréia. Com horários marcados nos estúdios
Hotel2Tango, contaram com o dono dos mesmos, Howard Bilerman,
para contribuir com as sessões de bateria e produção
das gravações. Além disso, usaram a
ajuda de uma série de músicos locais, como
Sarah Neufeld e Owen Pallet, que seguiram com a banda nos
seus shows.
O curso das gravações
foi atingido por ocorrências externas. Régine
havia perdido sua avó em junho e no ano seguinte,
os irmãos Butler perderam um avô. Em maio de
2004, foi a vez de Parry perder uma tia. Tais acontecimentos
acabaram atingindo a concepção do álbum
de forma neural. Após propostas de selos independentes
como Apple8, a banda decidiu assinar contrato com a canadense
Merge Records ("me senti muito confortável em
assinar com eles – lá não havia hype",
afirmou Win). Em setembro, o resultado das sessões
chegou às lojas americanas: "Funeral",
o álbum de estréia.
A receptividade do público
e a velocidade com que a banda foi divulgada pelos ouvintes
foram ímpares. Quando muita gente já estava
fechando suas listas de melhores de 2004, alguém
recomendava "Funeral" como um disco a ser baixado,
escutado e considerado. O álbum, é verdade,
justifica muito do que a banda colheu no curtíssimo
período.
Conceitualmente majestoso,
coloca em música e palavras os questionamentos
que se aplicam a quem abandona a adolescência
e ingressa na fase adulta. Análises rancorosas
das relações familiares se entrelaçam
com o temor natural dos novos desafios e a saudosa
nostalgia das etapas que ficaram para trás.
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No palco:
missa |
As mesmas coisas que invadem
a cabeça de qualquer um. E, claro, a tão presente
morte ajuda a alicerçar as letras e o clima angustiado
das composições. Musicalmente, a banda gravou
um turbilhão de idéias muito bem agrupadas,
onde se ouve ritmos variados com uma intensidade contagiante
em comum. A atmosfera pulsante é resultado de um
conjunto de músicos em fina sintonia. Múltiplos
instrumentos, arranjos elaborados e vocais emocionados de
Win e Régine fazem do álbum um item diferenciado
do que se observa nos meios musicais, o que não surpreende
o caráter de culto instantâneo associado ao
conjunto.
Os meses seguintes denotaram
uma avalanche de elogios ao trabalho, onde a mídia
especializada não teve alternativa senão acompanhar
a empolgação popular. Longe de figurarem em
veículos de grande massa, o alcance do trabalho segue
se desenvolvendo por meios alternativos, impulsionado pela
acessibilidade da internet. Nos sites de leilão,
cópias do esgotado EP são vendidas por mais
de uma centena de dólares (uma nova prensagem deve
ser disponibilizada pela Merge em 2005). Os shows mais recentes
têm se esgotado em poucas horas e a banda deve seguir
o ano de 2005 promovendo o disco pelo mundo. Funeral saiu
em fevereiro de 2005 pela Rough Trade no Reino Unido, devendo
contar com o auxílio de um single para a faixa "Neighborhood
#2 (Laika)". A banda tem planos de promover dois vídeos
de divulgação ("Rebellion (Lies)"
e "Neighborhood#2 (Laika)") e estuda a possibilidade
de editar um DVD com um de seus intensos e concorridos shows.
Encontram-se num inédito ponto onde estão
consagrados nos meios paralelos mas desconhecidos dos grandes
veículos e, visto que cinco meses após seu
lançamento "Funeral" já vendeu 60
mil discos nos EUA, as coisas podem avançar ainda
mais à medida que atingir circuitos comerciais. Embora
seja cedo para registrar, tudo indica que as pequenas, porém
significativas conquistas da banda sejam os primeiros tijolos
de uma grande construção.
Vicente Moschetti
março/2005 |