A
música do Joy Division é, sem sombra de dúvida,
das mais relevantes já paridas pelo rock. Trata-se
de uma rara combinação de elementos que geralmente
conferem a eternidade aos seus responsáveis: personalidade,
genialidade, simplicidade, combinados de forma a criar um
resultado único e fonte de influência e admiração
por anos, décadas, gerações. Para engrossar
o caldo, tem o infalível elemento rock 'n' roll: uma
morte trágica que interrompeu de maneira abrupta a
carreira da banda. Mas, no caso do Joy Division, me parece
que o fato nunca avultou-se e deu forjada estatura à
obra do grupo, como acontece na maioria das outras histórias
semelhantes. O Joy Division é uma das bandas mais importantes
da história devido à sua excelência artística,
e a morte prematura de Ian Curtis, uma triste circunstância
humana, ainda que altamente conectada à sua música.
Substance foi lançado
em 1988, contando sete anos após o suicídio
de Ian. Trata-se de uma coletânea admirável (ou
seja, item raro) devido à sua acertadíssima
seleção de faixas. Dentre os vários itens
póstumos do Joy Division, é um que com certeza
vale a pena ter na prateleira (eu apontaria outro: o disco
ao vivo "Preston 28 February 1980"), que funciona
bem quando na vontade de se ouvir um bom apanhado do que foi
o Joy Division, em todos seu espectro, em toda sua beleza.
O tracklist é uma espécie de resumo baseado
em todo o material trabalhado pelo grupo de Manchester e não
lançado em seus dois LPs ("Closer" e "Unknow
Pleasures"), abrangendo desde o período em que
o grupo ainda estava em gestação, compilando
gravações para coletâneas, compactos,
sobras de estúdio, etc. O impressionante é que
a exuberância do resultado fica à altura daquilo
que se ouve em "Closer" e "Unknow Pleasures";
nem minimamente se percebe alguma espécie de irregularidade
na qualidade das faixas, fato normalmente observado na comparação
entre a-sides e b-sides de uma banda. O brilhante material
de "Substance" é ainda mais espantoso ao
nos darmos conta de que tudo que está ali compreende
o trabalho de um grupo em pouco mais de dois anos, em seu
ciclo de vida e morte completo - do final de 1977, quando
ainda se chamavam Warsaw, até o começo de 1980,
pouco antes do suicídio de Ian Curtis. Em suma, o Joy
Division existiu durante pouquíssimo tempo, mas esse
período ínfimo foi suficiente para a criação
de um legado de altíssima qualidade e (relativa) quantidade.
A primeira faixa compilada,
que leva o mesmo nome que o grupo usava na época, é
resultado de uma gravação de dezembro de 1977.
Muito já ouvi falar a respeito da baixa qualidade das
primeiras composições do Joy Division, quando
ainda era Warsaw (algo como uma banda de punk rock a la Buzzcocks);
todavia, ouvindo-se Warsaw (a música), nota-se que
os caras já tinham o senso apurado para a melodia e
linhas de guitarra hipnóticas. Três outras canções
deste período aparecem em "Substance", em
graus de inspiração igual ou pouco abaixo de
Warsaw: No Love Lost, Leaders of Men e Failures. Sim, era
punk tosco, e a voz de Ian Curtis ainda parecia-se com a voz
de um ser humano normal, mas se a concisa Warsaw não
convenceu, No Love Lost não deixa dúvida - ali
estava uma banda diferenciada.
Representando ainda o período
de vida inicial da banda, mas quando já eram conhecidos
como Joy Division, temos duas gravações do final
de 1978, feitas junto com o produtor Martin "Zero"
Hannett: Digital e Glass, ambas incluídas na coletânea
"A Factory Sample". Na primeira, em especial, ouve-se
distintamente um dos elementos característicos do som
do grupo, sugerido justamente por Zero (o quinto Joy Division):
baixo e bateria em destaque, às vezes até mais
a frente do que a guitarra. Em evidência junto ao vocal
idiossincrático de Ian Curtis, esta técnica
é em grande parte responsável pela singular
sonoridade do grupo, que ousou transgredir os ditames do rock
'n' roll e assim criou um estilo único. De pouquíssimas
outras bandas pode-se dizer o mesmo.
De uma outra coletânea
- "Earcom 2: Contradiction", da gravadora Fast,
de Edimburgo - foram selecionadas as faixas Autosuggestion
e From Safety to Nowhere...?. No mínimo, um grande
momento o Joy Division entrega aos escoceses: a marcação
ecoante e maníaca da bateria de Stephen Morris em Autosuggestion
fez escola e influenciou quatro em cada cinco grupos dos anos
80. Por falar em obsessões e psicoses, a única
faixa aqui presente e constante em um disco regular da banda
("Unknown Pleasures"), She's Lost Control, é
sempre uma audição intrigante, perturbadora,
uma das canções mais representativas do Joy
Division. A versão aqui presente foi gravada em 1980,
um ano após a gravação da versão
de estúdio que aparece no primeiro LP, e, nessa segunda
encarnação, ganhou um verso a mais.
Em meio a algumas outras ótimas
canções, a perfeição reside de
forma realmente notável em Dead Souls e Transmission,
na opinião humilde deste que escreve. Na primeira (presente
em um raríssimo compacto francês, junta com Atmosphere,
mas depois incluída em praticamente todos os lançamentos
póstumos), uma longa e deslumbrante introdução
de guitarra. Ian começa a cantar empolgado, forçando
o contorno assombroso de sua voz, estourando no clássico
refrão "They keep calling me". Uma música
fenomenal, comentando por baixo. E Transmission, um primor
completo de melodia, de guitarra, de feeling, de letras, de
tudo.
Gostaria não precisar
citar Love Will Tear Us Apart, mas não seria justo,
sendo esse um dos singles mais bem sucedidos de todos os tempos.
O problema é que realmente nunca entendi o motivo da
devoção: sempre achei uma música - não
se ofendam - enfadonha, fraca, chata mesmo. É também
das pouquíssimas coisas que parecem antecipar o que
fariam os membros remanescentes do Joy Division após
Ian enforcar-se - o New Order, que, para encurtar, não
é nem de longe minha banda preferida. Com relação
a Love Will Tear Us Apart e ao New Order, milhões de
pessoas não podem estar erradas, o problema deve ser
comigo, então encerro por aqui.
No trecho final do disco, agregando
valor histórico a algo de já enorme valor artístico,
duas faixas de relevância moderada, garimpadas da curta
safra 1980: Komakino (single póstumo) e These Days
(lado B do single Love Will Tear Us Apart). Ambas simples
e excelentes.
Coletâneas são
sempre vistas com desconfiança, mas "Substance"
mostra que é uma questão de perspectiva. Quando
seus papéis se resumem a abarrotar num único
artefato físico aquilo que mais fez sucesso em rádio
ou MTV, o desprezo é merecido, ainda que o propósito
de ordem prática seja válido. No caso de "Substance",
onde observou-se uma criteriosa escolha de músicas,
e, mais importante, suas fontes, temos algo que vai além
de um simples caça-níqueis - a coletânea
passa a ser cumpridora de uma importante função
cultural: reunir, em um único disco, arte de altíssimo
nível, que de outra forma dificilmente estaria ao alcance
de muitos (lembrando que em 1988 nem eu nem você tínhamos
internet em casa). Mas este é um discurso insípido,
cujo objetivo era apenas justificar a resenha deste disco
em particular. Você fará melhor ouvindo "Substance"
ou qualquer outro trabalho que carregue o nome "Joy Division"
na capa, e ao invés de suicidar-se depois, como costuma
dizer o batido clichê, regozije-se com o fato de pertencer
à mesma espécie de um ser vivo capaz de criar
algo de beleza tão magnífica. |