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Passados
cinco anos do lançamento de "Machina / the
machines of God" e de todo aquele período
conturbado - o fim da banda, problemas internos, disco
anterior incompreendido pela maioria, egocentrices Corganianas
diversas, Black Wings Over America (o que era isso,
afinal?) - acredito que seja possível finalmente
ouvir o canto do cisne oficial do Smashing Pumpkins
e julgá-lo unicamente pela sua música. |
Na verdade, voltei a botar o disco no aparelho
não com esse intuito prévio, mas devido a algo
mais circunstancial: tendo ouvido dia desses uma versão
ao vivo qualquer de Glass and the Ghost Children, voltei a
ficar intrigado com a música que foi, desde a minha
primeira audição de "Machina", aquela
que mais me chamou a atenção. Desde esse dia,
Glass não saiu mais da minha cabeça, o que fez
com que eu começasse a ouvir o disco obsessivamente,
ocasionando, assim, seu redescobrimento.
Conclusão número um (na qual
cheguei lá pelos idos de 2000): Glass and the Ghost
Children é uma música sobrenatural. Conclusão
número dois (já estamos em 2005): os inegáveis
exageros na produção (a cargo de Flood) e no
conceito de "Machina" (a cargo de vocês sabem
quem) não podem de maneira alguma desmerecer uma obra
que reúne a supracitada Glass, além de músicas
do quilate de Stand Inside Your Love, The Imploding Voice,
I of the Morning, Blues Skies Bring Tears e Age of Innocence
em seu tracklist. São, em sua maior parte, sons espetaculares
que formam este disco de nome misterioso (nome este que não
será explicado aqui pois não tenho muito saco
para isso; procure por "le deux machina" no Google).
Conclusão número três: trata-se de uma
obra dignamente Pumpkins. Vou tentar explicar por quê.
(Talvez fosse o caso perfeito de uma resenha
a ser iniciada da última faixa em direção
ao início, mas não vou ceder a esta tentação...)
A abertura do álbum é de derrubar
paredes, mas confesso que nunca me sensibilizou muito. Lembro
que certa vez eu disse em uma lista de discussão que
eu preferia uma música qualquer do James Iha (nem lembro
qual era) à Everlasting Gaze. Fui espancado virtualmente
pelos colegas de lista.
Cabe um comentário aqui: as música
do James Iha aproveitadas nos discos do Smashing Pumpkins
(geralmente, nos singles) são muito boas. Acho bem
legais Go, Said Sadly, Believe, The Boy, Summer, entre outras.
Já em sua única incursão solo, o resultado
foi bem abaixo das expectativas. Como pode isso? Simples:
o japa devia compor faceirinho suas canções
e mostrá-las para o chefe, que apontava o que seria
aproveitado no Pumpkins e o que podia ir fora, ou se Iha quisesse,
colocado em um disco solo - para Corgan, dava no mesmo. Resultado:
boas músicas da autoria de James Iha espalhadas pela
discografia Pumpkins, e um disco solo bastante sem graça.
Não há problema algum em o cara querer ser ditador
de um país, desde que saiba fazer o bem de sua nação,
certo?
Mas voltando a The Everlasting Gaze: é
uma música legal e tal, munida de rifferama destruidora
e refrão empolgante, mas que não vai além
disso, o que é muito pouco em termos de Smashing Pumpkins.
Me parece até uma faixa meio apelativa e simplória,
unicamente uma resposta para aqueles que reclamaram da falta
de barulho do disco anterior. Olhando sob esse aspecto, até
que é um revide perspicaz, mas, repito, muito pouco
em termos de Smashing Pumpkins.
A faixa que vem a seguir, Raindrops + Sunshowers,
possui uma base eletrônica frenética debaixo
de uma massa sonora espessa, difícil de apreciar em
uma primera audição, e mesmo nas seguintes.
Um negócio elaborado com camadas e mais camadas e efeitos
diversos, no limiar do exagerado. Até hoje eu não
sei direito se gosto ou não dessa música. Acho
interessante a atmosfera criada e por baixo do espalhafato
todo até existe uma melodia bacana, mas acaba sendo
muito barulho para uma música só.
Stand Inside Your Love faz o álbum
crescer, finalmente. É de imediata assimilação,
o perfeito uso da dinâmica verso-calmo-refrão-ruidoso
sem grandes rebuscamentos relembrando um passado não
muito distante do grupo. É facilmente um dos pontos
altos do disco, com sua melodia dramática e trabalho
perfeito de guitarras, que criam clima na estrofe para em
seguida explodir em um belo refrão. Ganhou um clipe
que parece saído diretamente da adaptação
Felliniana de Satyricon.
I of the Mourning é filha da veia
pop de Corgan. Começa singela, fazendo brincadeira
com o rádio - provavelmente uma metáfora que
minha limitada capacidade de compreensão tenha deixado
escapar - emendando um refrão legal com microfonias
(recurso que a banda sempre soube usar muito bem) e ganhando
mais peso e intensidade lá pela sua metade. Uma boa
canção, mas, se não fosse por Stand Inside
Your Love, o disco não teria começado de verdade
ainda. E, se fosse o caso, começaria com The Sacred
and Profane, a quinta faixa, que traz novamente produção
detalhada e encorpada, mas dessa vez usada para o bem, enriquecendo
uma bonita música que nos relembra o quanto o The Cure
é influência de Corgan.
A partir desse momento, o álbum envereda
por uma alternância de faixas com as características
de I of the Mourning e The Sacred and Profane. Try, Try, Try
é a primeira delas, e vai na linha de I of the Mourning:
teor pop levemente melancólico (característica
acentuada pelo video-clipe) bem entrosado com a excelente
melodia. Já ouvi falar que essa música forma
uma trilogia ao lado de 1979 e Perfect. Novamente, meus poucos
recursos intelectuais aliados à minha falta de paciência
com as bobagens de Billy Corgan me impedem de falar mais sobre
isso. É uma música legal e é isso aí.
Heavy Metal Machine traz de volta o timbre
pesadão de The Everlasting Gaze, mas dessa vez ajustado
de um jeito que lembra um Soundgarden menos sisudo e também
menos interessante. Corgan novamente fazendo piadinha com
o mundo da música ("if i were dead/would my records
sell/could you even tell/is it just as well") prova que
ele definitivamente não nasceu para comediante. O negócio
do careca é fazer música séria. O resultado
desaponta um pouco e dessa vez acho que a maioria dos fãs
concorda comigo, mas a boa notícia é que este
é o último ponto fraco do álbum, pelo
menos em termo de composição.
This Time abre a segunda metade de "Machina"
na linha de I of the Mourning e Try, Try, Try, com um pouco
mais de presença das guitarras, que fazem um bom trabalho
de base e criam ainda bons floreios que seguem em bela sincronia
com o lirismo de Corgan. The Imploding Voice é outra
em que fica evidente que os caras passaram um tempinho considerável
mexendo nos botões dos equipamentos no estúdio,
inflando as músicas. Se você não se incomoda
com isso, pode se divertir bastante com a sonoridade peculiarmente
suja e arranhada de The Imploding Voice. O refrão redondinho
sobe ainda mais sua cotação e não são
poucos os amigos que consideram essa a melhor música
de "Machina".
Particularmente, acho que o grande momento
do disco vem a seguir. Glass é o esplendor já
citado anteriormente. Uma música audaciosa que começa
conduzida por baixo e bateria, mas logo é invadida
por guitarras solando erraticamente, enigmáticas, indefinidas.
A canção vai ganhando forma aos poucos, até
a entrada do vocal sempre indefinível de Billy, que
guia a melodia por exuberantes quatro minutos antes que tudo
se desintegre repentinamente. Um curto interlúdio mostra
que a peça não acabou: os elementos voltam a
se aglutinar novamente, mas, desta feita, sob a forma de um
organismo diferente, uma pequena canção atmosférica
que leva o ouvinte a passear por uma espécie de labirinto
de química misteriosa, povoado por fantasmas torturados
e aranhas invisíveis. As guitarras outrora exaltadas
converteram-se em ruídos distantes e a única
coisa em comum com o primeiro ato é a voz de Billy,
que canta de maneira vagarosa, sem expressar qualquer esperança
de vencer tal labirinto. Os truques de estúdio aqui
eu nem comento (existem, medidos em toneladas), não
faz diferença alguma. A pretensão de Billy Corgan
é ilimitada e não somente sonoramente, mas também
conceitualmente, e nisso se baseia a grande maioria das críticas
feitas à banda e a músicas como essa. Mas acredito
que se você está lendo esse texto, você
é fã do Pumpkins, então aqui vai a opinião
de um outro fã: Glass and the Ghost Children é
um espetáculo sonoro, das coisas mais inspiradas que
a banda já fez. A despeito de todo obscurantismo que
cerca a historinha de Glass, da narração que
ouvimos no interlúdio, das sugestões de alquimia
que aparecem na letra e no encarte do álbum, essa música
é uma obra de arte arrepiante.
A simplicidade pop retorna com Wound, predominantemente
acústica, clima pra cima, refrão para cantar
junto e apagar da alma os fantasmas de Glass and the Ghost
Children - ou pelo menos, tentar. Talvez a única coisa
que não convença aqui seja o vocal de Billy,
que definitivamente não foi moldado para interpretar
canções alegres e por vezes soa meio desajeitado,
como na primeira frase. Em função disso, eu
prefiro a versão de Wound que está no bootleg
"Machina Acoustic Demos", de clima bastante diferente.
Na sequência, The Crying Tree Of Mercury, uma música
que demorei para apreciar devido à sua introdução,
digamos, diferente. Quando começa a cantar, Billy equilibra
o jogo: “these are the tears i've been crying my whole
life/like an ocean of desire/i'm reaching through the noise/across
the dusk of time/within the lilting lights/i am singing out
to you”, e o que se destaca aqui acaba sendo somente
o lirismo de Corgan. Sonoramente, fica de novo a sensação
de que um tratamento mais minimalista, com menos minúcias
comprimidas em três minutos e pouco, seria mais eficaz.
Da forma com ficou, The Crying Tree Of Mercury soa muitas
vezes como uma música de plástico.
With Every Light já apresenta um melhor
equilíbrio nessa equação. Os elementos
acrescidos após os quatro membros da banda entregarem
suas partes instrumentais são mais econômicos
e em melhor sintonia com o que a melodia exige. Uma canção
de clima ameno, mixagem perfeita e bom uso de teclado, que
vai pontuando os melhores momentos.
As duas faixas que fecham “Machina”
são preferências pessoais. Entraram fácil
em todas as coletâneas em k7 que eu já fiz para
a banda - e não foram poucas. Blue Skies Bring Tears
é outro exemplo onde as traquinagens de estúdios
renderam um saldo positivo, mas o que resplandece aqui é
novamente a destreza de Billy Corgan para engedrar melodia,
lirismo e musicalidade, e não raramente com notável
originalidade. Essa sempre foi, ao meu ver, a grande virtude
de Corgan; seja lá qual for a roupagem que ele queira
dar às suas composições - seja na forma
de rock ‘n’ roll puro e direto como em “Siamese
Dream”, na pluralidade de “Mellon Collie and the
Infinite Sadness”, ou na eletrônica sombria de
“Adore” - o cabra sabe compor músicas cativantes
e amalgamá-las em texturas e arranjos diversos, que
ressaltam sua beleza. Parece algo banal, a virtude básica
de um músico, mas, como a maioria geralmente fica presa
a formatos e estilos e não vislumbra o universo de
possibilidades que podem enriquecer suas criações,
Billy Corgan tem como trunfo justamente não colocar
limites no processo de transformar aquilo que está
em sua cabeça em um disco. Blue Skies Bring Tears,
com sua melancolia dolorosa adornada por espasmos de guitarra
e seu lamento aprofundado pelos vocais femininos que se confundem
com efeitos diversos, é uma prova cabal do talento
deste indivíduo (ou da banda, se você preferir).
Certo que “Machina” não
tem o mesmo primor de seus antecessores, mas também
não deixa de ser um capítulo que faz juz à
brilhante discografia do Smashing Pumpkins. É o capítulo
onde a banda fez um apanhado de tudo que já havia experimentado
e condensou em um bom álbum, a despeito de alguns desacertos
pelo caminho. Sua audição pode exigir um pouco
do ouvinte, tal a densidade sonora que a banda maquinou -
mas um disco do Smashing Pumpkins nunca foi algo fácil,
a ser colocado entre um Ramones e um Nirvana, na bandeja de
seu CD Player, por exemplo. No mínimo, deixaram de
ser após "Siamese Dream".
Aos mais atentos: não esqueci de Age
of Inocence, a última faixa. Mas aí está
uma daquelas músicas que o escriba gosta tanto que
não consegue achar palavras para descrevê-la.
Só para não passar totalmente em branco: com
versos como "before the rites of spring/come to mean
all things/a little taste of what may come/a mere glimpse
of what has gone", Age of Inocence é, entre os
mais elogiosos predicados, também uma excelente música
para epilogar este disco. Se você não conhece,
baixe imediatamente e ouça, e esqueça de uma
vez por todas os manés que lhe dizem que Pumpkins é
ruim porque o Billy Corgan é chato (ele é),
é megalômano (ele é), a voz dele é
estranha (ela é), e isso e aquilo (tudo isso ele também
é, mas acima de qualquer coisa é um puta de
um músico e compositor brilhante).
Contra "Machina", além dos
citados momentos onde a superprodução torna
o resultado incomodamente artificial, talvez somente a inexplicável
ausência de Speek Kills, uma das mais inspiradas composições
de Corgan. "Machina 2 / Friends and Enemies Of Modern
Music", o disco que a banda liberou gratuitamente na
internet pouco tempo depois, conta com uma versão dessa
música, mas, se a magnífica versão que
está no vinil de "Machina" e na versão
inglesa do single de Stand Inside Your Love figurasse no tracklist
de todas as versões do álbum, teríamos
um trabalho ainda mais rico e interessante. Se não
conhece, baixa junto com Age of Inocence. Duas musiquinhas
que sozinhas tornam irrelevantes discografias inteiras. É
realmente uma pena que Billy Corgan tenha perdido o poder
de compor coisas como essas. |